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Leap Year (Año Bisiesto, 2010), Michael Rowe

Publicado originalmente na Cinética em Outubro de 2010.

Problemas explícitos

Ano Bissexto, que rendeu a Michael Rowe a Camera D’Or no último Festival de Cannes, é de certa maneira fadado a se perder nos ruídos de compreensão. O filme, porém, não quer diferente e, para o bem e para o mal, sua capacidade de choque é valor agregado como princípio: trata-se de um conto caseiro em pálido cinemascope, no qual a solidão da protagonista Laura (Monica del Carmen) será severamente marcada por sexo, sadomasoquismo, porradas e mijo na cara. Se mesmo um Império dos Sentidos (1976), de Nagisa Oshima, carrega consigo a marca da história minúscula que se interessa mais por maneiras inusitadas de se usar um ovo como objeto de cena do que pela precisão absolutamente maiúscula com que Oshima encena aquela tragédia específica, é inevitável que uma estréia como Ano Bissexto carregue a consciência de que sua herança – positiva ou não – será de natureza semelhante. Nenhum grafismo é motivado por pudor, e Michael Rowe busca sempre o gráfico.

Mas apesar de as cenas de sexo e violência serem consideravelmente explícitas – e nisso há uma precariedade de luz e cena que ajuda bastante o filme a se colocar mais próximo de um snuff movie do que de um Jogos Mortais – Michael Rowe é esperto o suficiente para se livrar do peso dessa escolha e deixá-lo a cargo do espectador. Pois, já no terço final de projeção, o que parecia uma sessão de tortura e submissão é rapidamente transformado em um ato de entrega voluntário e sem culpa. Se nos enojamos ou nos revoltamos com as situações às quais Laura é submetida, o nojo e revolta são exclusivamente nossos: é ela quem se submete. Mais do que isso, quer ir mais longe: pede explicitamente ao amante que a corte em retalhos, que a faça sangrar até a morte, para que ele depois possa fazer sexo com seu cadáver. Não há, portanto, perversão possível quando ela é transparente e voluntária. Se há repulsa, é apenas uma manifestação da castração que vem da platéia para a tela. Uma vez que se acredite que Michael Rowe é um sádico oportunista, a repulsa moral seria a maneira mais rápida de livrá-lo de ambos os adjetivos.

Isso não impede, porém, que a dedicação gráfica de Rowe gere problemas de outra ordem. Pois assim como toda cena de sexo e “tortura” será realizada sem rodeios ou truques de ocultamento, Michael Rowe será igualmente explícito com toda a base moral, social e psicológica que fundamenta aquela situação. À vida libertina de Laura, teremos como contraponto cenas em que ela se masturba à janela, vendo um casal de namorados bem comportado que assiste televisão.Se há uma foto de um homem ao lado da cama de Laura – em um porta-retrato que estará sempre convenientemente virado na direção da câmera, mesmo quando isso não faz qualquer sentido em um desenho realista do espaço – ela rapidamente será explicado como o pai morto que norteia a devassidão da protagonista, e explica o título do filme (que, por sua vez, será relembrado até o final com várias cenas de um calendário na parede, marcado de caneta vermelha para que não esqueçamos). Para todas as hematomas, e todas as trepadas pouco promissoras (há uma, inclusive, com direito a gran finale que não refuta a parlapatice: o sujeito senta na cama e liga para a esposa), há uma cena de Laura lendo A Arte de Amar, de Erich Fromm.

De tudo que há de explícito em Ano Bissexto, o sexo e a violência são os menores dos problemas. Ao contrário, a frontalidade com que o filme confrontará seus supostos tabus é exatamente aquilo que ajuda a camuflar suas verdadeiras fragilidades: uma relação de causa e efeito nunca acima do banal; um suposto subtexto racial tão expressivo quanto o de qualquer filme que põe pessoas de raças diferentes a contracenar; uma negação absoluta de qualquer lacuna ou gratuidade que parece tão risível quanto as realizadas, como piada, por Robert Rodriguez em Machete (se vemos um close de um saca-rolhas, é garantia que ele será fincado na testa de alguém poucos minutos depois). Antes mesmo de todas as complicações políticas e morais que suas falsas questões trazem a cabo, Ano Bissexto ofende no único ponto que é de todo imperdoável: é simplesmente mau cinema.

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