Publicado originalmente na Cinética em Setembro de 2010.
Armadilhas de uma época
A sessão de abertura da II Semana dos Realizadores se tornou um apanhado de diversos sintomas entre os mais marcantes de algumas recentes propostas de olhar no cinema brasileiro. Tanto Desassossego quanto O Mundo é Belo são exemplos ideais, extremos e acabados dos desdobramentos de alguns projetos de cinema em curso claro nos últimos anos – projetos que, a propósito, já renderam frutos bem mais instigantes do que estes. De certa maneira, os dois filmes pegam algumas terminações marcantes de seu tempo e redor e levam-nas a um grau quase paródico de acabamento na exposição, como se ambos pudessem e almejassem totalizar um processo coletivo de cinema em uma expressão final. Esse clima de “resumo de época” perpassa ambos os filmes, mas o inventário encapsulado para o tempo e a história não é dos mais animadores.
O Mundo é Belo leva ao limite uma série de questões prementes no cinema brasileiro contemporâneo, especialmente (mas não só) o de circulação restrita a festivais como essa Semana: a precariedade como propulsor estético; uma adoração explícita da plenitude do mundo e da vida; a relação forte com a videoarte; o cinema em primeira pessoa, minúsculo mas de ambições gigantescas; um projeto de vídeo espontâneo como saída possível para um cinema grande e pesado, atravancado por condições de produção irreais e dispêndio (de dinheiro e energia) que margeiam o impossível. A cada festival vemos uma nova safra de filmes que compartilham essa mesma índole. Mas apesar da aparente facilidade sugerida pelo formato, esse parece ser dos caminhos mais difíceis a se trilhar ileso: é preciso estar munido de imagens cuja força e sentido sejam suficientes para saírem íntegros dessa que não deixa de ser uma jornada de vaidade. Para cada Brakhage ou Jonas Mekas – sujeitos que escoravam e escoram seu cinema em bases extremamente pessoais, e ainda assim têm filmes brilhantes e universais – há centenas de milhares de filmes que reafirmam o senso comum, e que procuram expressar algo que deveria ser único e intransferível nos mesmos índices imagéticos de sempre, com os mesmos sentidos de sempre.
O grande problema de O Mundo é Belo reside aí. Embora exista, no filme, uma intenção de auto-questionamento – uma vontade de embarque e de dissolução mística do sujeito, que é sempre sabotada pela concretude do mundo que pulsa fora do quadro – seu repertório de imagens é por demais frágil para carregar a força necessária. Pois se temos planos antológicos de céu em filmes como Coração de Cristal (1976), de Werner Herzog, ou Elefante (2003), de Gus Van Sant, é porque em ambos os casos há uma revitalização estética e semântica do signo que lhe restitui o impacto da visão original, do signo enquanto tal. À primeira vista, O Mundo é Belo não tem imagens que consigam superar minimamente esse desafio – desafio que, nada simples, é inerente à criação artística, e que se torna ainda maior em obras que dependem exclusivamente do poder simbólico e plástico das imagens para produzir sentidos e sensações. Diante da plenitude do inefável, as imagens de O Mundo é Belo sintomatizam sua própria afasia.
Não é dilema muito diferente o de Desassossego (foto). Em primeiro lugar, talvez se fizesse necessário ressalvar a irregularidade inerente de um projeto dessa dimensão: reunir, como um único e contínuo longa, 10 curtas assinados por realizadores distintos em resposta a uma carta-provocação de Felipe Bragança. A ressalva pede, por sua vez, uma outra ressalva: se Desassossego é movido pela crença na reunião de um grupo, essa é uma crença exclusiva do filme e dos seus realizadores, que não se justifica fora dela. Desfaçamos, portanto, o nó de ressalvas: Desassossego é o filme que deseja ser – incluindo aí a possível e hipotética insatisfação de um ou outro diretor com o todo do qual seu filme (seu todo – evocando o jogo semântico de Ao Braço do Mesmo Menino Jesus quanto Appareceo, de Gregório de Matos) se tornou parte – e sua irregularidade não deixa de ser um problema grave por ser parte de um projeto calcado na irregularidade. À “carta do desassossego”, os 14 diretores responderam com filmes que foram reunidos por Bragança e Marina Meliande, e conectados por vinhetas – visuais e textuais – que emendariam os frangalhos. Os curtas ganham estatuto de fragmento – que podem ir do narrativo mais direto (o musical sci-fi meio quirky de Marco Dutra e Juliana Rojas) ao puro referencial (o episódio à Mal dos Trópicos de Felipe Bragança), passando pelo assombro bruto (o de Ivo Lopes Araújo) e o filme de afirmação de um procedimento (o de Leonardo Levis e Raphael Mesquita) – e são amarrados em um caleidoscópio uno, cuja referência mais próxima e ideal talvez seja o primoroso Império dos Sonhos, de David Lynch.
A diferença radical é que Lynch estilhaçava o uno, enquanto Desassossego tenta criar o uno a partir dos estilhaços: um, filme de pesadelo; outro, filme de faz-de-conta. Há, aí, um problema grave. Grave por, em primeiro lugar, as vinhetas dirigidas por Felipe Bragança e Marina Meliande contaminarem os fragmentos com uma dose cavalar de doçura, em uma alegria poética, posada e carnavalesca que determina um sentido “uno” muito diferente daquele alcançado pelos dois diretores em A Fuga da Mulher-Gorila (2009). Pois embora o traço estilístico seja o mesmo – um mesmo gosto pelo jogo de palavras, uma busca não-naturalista pela expressão do íntimo, um interesse acentuado pelo universo jovem feminino – em A Fuga da Mulher-Gorila ele era contraposto a uma brutalidade de encenação que, pelo contraste, gerava um outro sentido. Nas vinhetas posadas de Desassossego, essa poética da dupla de diretores revela uma fragilidade imensa, pois o artificialismo consciente das cenas e do texto revelam o artificialismo dos sentimentos que deveriam – queremos crer – trazer algo de genuíno e íntimo ao conjunto de filmes. O que acentuava o gosto pelo artifício e pela criação em A Fuga da Mulher Gorila aqui parece somente denunciar sua própria falsidade.
Assim como em O Mundo é Belo, a iconografia busca sentido onde se espera encontrá-los – algo mais gritante no episódio de Carolina Durão e Andrea Capella, que vai ao parque de diversões buscar a mesma beleza plástica e a mesma previsibilidade de sentidos que partiam A Montanha Mágica (2009), de Petrus Cariry. As luzes de natal, o mar, o armário velho, as explosões – tudo isso vem como índice textual de um arroubo de violência que o filme apenas tematiza, e que nunca consegue transformar em matéria estética. Fala-se de explodir um mundo, mas nunca vemos determinação suficiente para se explodir o filme. Bradando do alto da falsa segurança de uma torre de açúcar, Desassossego é um filme inquietantemente sossegado.
Essa doçura deliberada acaba por determinar a maneira de se olhar para todos os filmes do conjunto, neutralizando as perceptíveis diferenças entre as partes em um mesmo melado. A força inicial do episódio de Helvécio Marins Jr. e Clarissa Campolina (o melhor do conjunto, talvez até por ser o primeiro) vai se diluindo progressivamente no todo, engendrando os picos isolados de interesse em uma lógica bastante estranha, que parece fazer um esforço incomum para enxergar doçura e alegria em tudo e todos. Que isso se dê em um filme sobre o universo jovem é ainda mais sintomático, pois a juventude não existe sem seu próprio conflito – aquele que se dá entre a infância e a vida adulta, mas também que se reproduz em toda uma relação que é apaixonada, decerto, mas também atribulada e violenta com o mundo e com o próprio eu. Desassossego, nesse sentido, se torna estranhamente parecido com 5xFavela – Agora por Nós Mesmos (2010), filme onde a suposta multiplicidade sai pela culatra, pois todas as partes dizem a mesma coisa (mesmo que uma diga melhor que as outras), e compartilham a mesma necessidade de neutralizar tudo que pareça agressivo pela manutenção de uma relação que idealiza e aliena o sujeito do mundo. Os jovens já puderam mais.
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