Publicado originalmente na Cinética em Setembro de 2010.
O retorno dos dispositivos
É bastante sintomático o quão difícil é lidar com A Boca do Lobo (foto) e Os Lábios sem falar de seus dispositivos, em uma época em que o termo “dispositivo”, de presença tão comum nas discussões cinematográficas há quatro ou cinco anos, já aparece desgastado, seja em frequência de uso ou em significado. Em ambos os filmes, uma deliberação externa norteia a criação e organização do material, tensionando a relação entre a auto-fabulação e o documentário. Em Os Lábios isso é explícito: assim como acontecia em Iracema, de Jorge Bodanzky (para lembrarmos um), Santiago Loza e Iván Fund colocam três atrizes interpretando agentes de saúde que viajam pelos grotões da Argentina, servindo a população local. O dispositivo seria justamente esse encontro da encenação profissional com personagens que, em tese, apenas reagem a este encontro como “elas mesmas”. Já A Boca do Lobo parte de uma divisão de imagem e banda sonora que faz lembrar os primeiros documentários de Chantal Akerman: vemos imagens das ruas da cidade, das pessoas nos bares, enquanto ouvimos, entre um e outro depoimento, cartas de amor que falam de prisão, ciúme e desejo.
A Boca do Lobo e Os Lábios são, portanto, filmes feitos para o papel, mais do que para serem assistidos. No caso do filme de Pietro Marcelo, a estrutura amarra o tema (o amor entre dois homossexuais ao longo das décadas) com rigor e justeza, mas sem qualquer traço de pulsação. Já Os Lábios se perde por completo na repetição cotidiana das consultas médicas e na sistematização de quem só filma rostos de perto e sempre de perfil, esperando que breves respiros de vida venham a surpreender a base estanque na qual o filme se finca. Como eles não vêm, os diretores o produzem na gratuidade autoritária do final aberto, e conciliador. Premiados em Berlim (A Boca do Lobo) e Cannes (Os Lábios), são ambos filmes que hoje existem por aí aos baldes, e fazem pouco mais do que afirmar – mesmo que com rigor e justeza – seu receio em se comprometer com qualquer coisa além de sua própria indefinição.