Publicado originalmente na Cinética em Setembro de 2010.
Viagem incerta
O Último Trem para Casa tem uma proposta potencialmente interessante: acompanhar os trabalhadores chineses em uma longa viagem de trem (cerca de 50 horas) até sua cidade natal, para as comemorações do Ano Novo Chinês. Mas em poucos minutos de filme, vemos o quanto essa sinopse se revela apenas acessória. Na verdade, a viagem de trem é apenas um dos acontecimentos (e não é sequer o clímax) da vida da família que protagoniza o filme, e que Lixin Fan acompanhará tanto na privacidade do lar quanto no trabalho. Surge, com isso, uma possibilidade de arco interessante, mas que o filme negligencia: a observação cotidiana do trabalho como o ordinário que antecede o extraordinário (a viagem de trem e o reencontro com a família) e que, dessa maneira, lhe confere sentido. A viagem, portanto, carregaria o peso da separação vivenciada até aquele momento – um pouco como na segunda parte de Além dos Trilhos (2003), de Wang Bing.
Não é, porém, questão de se lamentar o que o filme deixou de ser, mas sim o que ele é, de fato. Pois O Último Trem para Casa parece perceber uma série de possibilidades de montagem e estrutura – seja da alegoria política suscitada pela presença das Olimpíadas de Beijing no meio do filme, seja do próprio caráter metalinguístico do trem que, como o filme, conecta pais e filhos separados pelo inevitável – mas não leva a cabo nenhuma delas com firmeza ou convicção. Há uma distância imposta pela estratégia de observação + depoimentos para o nada (sem perguntas ou contato visual com um entrevistador; as pessoas olham para o horizonte e falam sobre suas vidas) que tira a gravidade das situações, e faz um princípio de tumulto grave na fila do trem e um confrontamento direto de uma das personagens com a própria natureza do filme (não só a câmera, mas também a ordem regente do próprio documentário) perderem o que eles tinham de violento e crível.
Nessa indecisão entre o íntimo e o maiúsculo, O Último Trem para Casa não consegue se dedicar de fato a uma coisa ou outra, que dirá produzir um choque entre elas. Dos cortes das trajetórias particulares para as multidões despersonalizadas (os planos gerais da cidade, da fila e do interior do trem, da boate, etc), Lixin Fan sai com o único filme possível de uma relação que se percebe burocrática e desestimulante entre documentarista e personagens. Filmando uma epopéia sem duração, e uma crise sem traços de violência, O Último Trem para Casa é um filme que simplesmente parece não acontecer.