Publicado originalmente na Cinética em Junho de 2010.
Imagens que ficam
Embora Memória Cubana seja dirigido pela brasileira Alice de Andrade, em parceria com o veterano diretor e fotógrafo cubano Iván Napoles, pode-se dizer que é um autêntico filme cubano, pois não só nasce dentro do ICAIC (Instituto Cubano del Arte e Industria Cinematográficos) como lida diretamente com um material de grande valor histórico para o país: os noticieros – cinejornais realizados pela equipe coordenada por Santiago Álvarez, durante e após a revolução cubana. Alice e Iván recuperam este material com a intenção de contar não exatamente a história deste país, ou sequer a do grupo, mas sim a do encontro entre essas duas partes, registrado naqueles pequenos rolos de filme. A abordagem desse rico material guarda poucas surpresas: Alice procura os sobreviventes do grupo (que incluía o fotógrafo e, posteriormente, co-diretor do filme, Iván Napoles), e monta entrevistas atuais junto a trechos dos cinejornais originais. Há, naturalmente, um valor gigantesco na simples recuperação e exibição dessas imagens, muitas delas extraordinárias não só como registro da História, mas também como cinema.
Mas o que mais interessa em Memória Cubana é a maneira como Alice de Andrade realiza, muito discretamente, operações cinematográficas contundentes na estrutura do filme, que alteram – de maneira suave, mas decisiva – a relação do espectador com o filme. Em primeiro lugar, há um aspecto metalinguístico: Ivan Nápoles é o câmera do material produzido para Memória Cubana, mas também de diversos daqueles noticieros. Com isso, temos um choque constante de dois momentos históricos, onde todas as diferenças de textura (da película para o vídeo), visuais (do preto e branco para as cores), convencionais (as diferentes naturezas dos enquadramentos; a mudança do registro imediato em câmera no ombro para as entrevistas planejadas em tripé) e materiais (a diferença do mundo daquela época, para o mundo de agora) são colocadas em contato.
É mais interessante, porém, que Alice de Andrade e Iván Napoles nunca tragam o questionamento da natureza das operações para o primeiro plano do filme. A metalinguagem está ali, evidente; não é necessário fazer dela um tópico para que ela seja uma questão essencial. Essa atitude não só vai de encontro às estratégias de ponta do documentário brasileiro recente, como evidencia uma postura diante daquele material que se põe em plena sintonia com a posição realizadora das equipes dos noticieros: colocar-se a serviço de algo. Assim como o grupo do ICAIC trabalhava como uma ferramenta da revolução, Memória Cubana abaixa o tom do presente em nome da revitalização de um passado. O interesse do filme está nos noticieros, e são eles que motivarão os procedimentos de direção, fotografia e montagem. É preciso que o filme sirva à História.
Não deixa de ser sintomático de nossos tempos que um filme onde tudo está tão evidente corra o risco de passar como uma obra retraída, de intenções tímidas. Ao contrário, o material dos cinejornais é tão suficiente que uma instabilidade de registro pode ser percebida a partir do próprio material – em vez de, como anda em moda, da conversa sobre o material. Dois exemplos: quando Iván Napoles conta da chegada do grupo ao Vietnã, é perceptível que os planos dos cinejornais são feitos de dentro de um jipe do exército. Essa simples constatação já é suficiente para o espectador problematizar a instância enunciadora dos noticieros, e de como ela influenciará a construção daquelas imagens. Essa discrição, porém, é mais por uma lucidez realizadora do que por um acovardamento diante da história. Em um dos melhores momentos do filme, um técnico de som do ICAIC conta sobre a chegada da equipe de filmagens no Cambodja, uma semana após a abertura do país. Eles filmam as ruas absolutamente vazias e, na hora de revisar o material, percebem que o único ruído da filmagem vinha do próprio gravador de som. Se falamos, portanto, de operações e procedimentos, é porque a discrição e a humildade diante do material recuperado são conquistados por meio delas, e elas têm um influência decisiva na compreensão dessa história. Memória Cubana talvez nunca pegue o espectador pelas tripas, mas nos segura firme e decididamente pelos olhos.
Pingback: Lisanka (2010), Daniel Diaz Torres - FABIO ANDRADE