Publicado originalmente na Cinética em Junho de 2010.
O triunfo do desconhecido
Há uma facilidade que induz que Alamar seja jogado em um saco de gatos sem fundo, onde parecem caber todos os filmes recentes que tracionam, em alguma medida, as fronteiras entre o documentário e a ficção no cinema. Esse gesto fica perigoso quando se torna conectivo entre obras que têm preocupações centrais radicalmente diferentes, e que acabam unidas de maneira totalizante, ou até totalitária, por um recurso, uma ferramenta de dramaturgia. Pois excetuando uma ou outra menção em cena da presença da câmera, não há indícios suficientes em Alamar que coloquem essa instabilidade de registro em primeiro plano. Muito como um Morro do Céu, de Gustavo Spolidoro, ou mais ainda como os filmes de Robert Flaherty, o documental serve como um estágio anterior que possibilitará a entrada em um espaço, que por sua vez permite a construção de um universo. Essa abordagem não é, portanto, parte integrante da obra, embora sua pré-existência seja essencial para o resultado. O documentário é apenas a chave do ateliê.
Alamar parte de uma premissa extremamente simples: filho de um mexicano com uma italiana, o garoto Natan (Natan Machado Palombini) deixa Roma para passar uma última temporada com o pai (Jorge Machado) em uma palafita no mar, perto ao Banco Chinchorro – um atol no mar caribenho. “Partir” não é um verbo ideal, pois Alamar realmente não ambiciona ir narrativamente a nenhum outro lugar. Tanto que esse fiapo de narrativa é resolvido quase à parte do filme, em uma sequência inicial de fotografias que ilustram o texto em voz over. Uma vez lá, junto somente do pai, do pescador que ali mora (Nestór Marin) e dos animais que transitam pela redondeza, Natan aprenderá sobre a vida pela ótica do pai, e é exatamente isso que acompanharemos ao longo de toda a projeção.
Alamar é menos um filme de tensão de registros – como Iracema, de Jorge Bondanzky e Orlando Senna – do que um filme de instalação do espectador em um determinado espaço, com um grupo restrito de personagens. Essa instalação, porém, só é bem sucedida pelo notável talento com o qual Pedro González-Rubio – que é roteirista, diretor, produtor, fotógrafo e montador do filme – faz, desse espaço físico de natural deslumbre, um espaço cinematográfico ainda mais instigante. González-Rubio tem uma capacidade notável de fugir de todos os clichês de ritmo e plasticidade que infestam inúmeros filmes sobre o mar, com os travellings lentos e a muleta permanente dos planos contemplativos. Seja pelo posicionamento da câmera ou pelo trabalho de montagem, o diretor transforma um espaço naturalmente exuberante em um cenário de ficção científica minimalista, onde crocodilos habitam os mares e o desaparecimento de uma ave pode se tornar uma reviravolta dramática. A predominância dos planos fixos em plongée subverte a placidez das marés com uma tensão constante, num misto de fascínio e insegurança rigorosamente condizente ao olhar do protagonista.
Com isso, o diretor consegue um feito notável: produzir imagens que nos dão uma sensação rara de ineditismo. Muito como Tulpan, de Sergei Dvortsevoy, Alamar apela a esse interesse muito visceral de quem vê o mundo, ou partes específicas dele, pela primeira vez. Ao contrário do que fazem acreditar as cartelas contextualizantes e oficialescas que fecham o filme, ressaltando a importância de preservação do Banco Chinchorro como patrimônio da humanidade, a verdadeira função da locação é servir ao diretor como esse oásis do olhar, esse objeto que desperta o fascínio no artista e o move à realização de algo realmente singular. Alamar consegue isso por diversas vezes, seja quando mostra o desconhecido, seja quando filma o que já nos parece trivial. E isso, mais do que a correção ecológica ou as ambições de propagar uma conscientização do óbvio, é um feito sem dúvidas admirável.
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