Publicado originalmente na Cinética em Abril de 2010.
Terra Deu, Terra Come parte de uma premissa que, embora nada nova, está na origem de diversos filmes brasileiros recentes: a verdade pode ser revelada com uma mentira. Essa frase taxativa por vezes é tomada de forma literal (pensemos em Filmefobia, de Kiko Goifman, ou no curta cearense Vista-Mar, documentário que só é possível por os diretores mentirem em tela para as suas personagens), mas na maior parte das vezes ela é suavizada por uma outra dualidade: alcançar a realidade documental por meio de uma ficção (pensemos na obra de Robert Flaherty, Jean Rouch ou, mais recentemente, em Jogo de Cena e Moscou, de Eduardo Coutinho). Esse princípio, que movimenta o filme de estréia de Rodrigo Siqueira, é o mesmo de Petit a Petit (1970) ou O Homem de Aran (1934): buscar, pela reencenação, encontrar algo de autêntico (intenção exageradamente explícita nas cartelas finais).
Os problemas de Terra Deu, Terra Come surgem quando se confronta essa idéia – a rigor, legítima e que já rendeu obras extraordinárias – à maneira que ela toma corpo dentro do filme. Pois embora haja, no discurso do filme, uma valorização de uma “mentira” original, ela nos é revelada somente ao final da projeção, em construção bastante comum na ficção, onde a verdade é encoberta por um spoiler reconfigurador (O Sexto Sentido, Amnésia, Os Outros e, mais recentemente, Ilha do Medo). Tudo aquilo que vimos nos é reapresentado (neste caso, literalmente, com a repetição modificada de um plano) como uma encenação ao final, o que em tese conduziria o espectador a uma reflexão de o quanto a autenticidade de uma cena está conectada à sua veracidade, ou tão somente a uma impressão de realidade. Mas se há uma verdade dentro da mentira, como parece crer o diretor, por que o impulso de acobertá-la? Se há mesmo uma crença na mentira como um impulso realizador, como é possível honrá-la (ou mesmo usá-la) que não apresentando-a como tal?
O que parece uma simples decisão estrutural se torna crucial, uma vez que a estrutura é absolutamente vital à constituição da proposta. É justamente na ordem e nas modulações da apresentação dos eventos que Terra Deu, Terra Come precisa se sustentar, e a escolha infeliz pelo atalho da surpresa efêmera acaba por sacrificar o que o filme tem de realmente particular. Pois essa opção pelo farsesco conta com a ingenuidade do espectador diante da situação armada, uma vez que sua sustentação depende intimamente da crença individual em uma encenação que não faz o suficiente para preservá-la. Se o espectador pega o filme em sua mentira logo nos primeiros minutos, ele não é mais possível (ao menos não como foi desenhado).
Perde-se, com isso, o precioso clima das sequências mascaradas – muitas vezes desperdiçadas em montagens paralelas bastante descabidas – além de uma frontalidade na relação entre personagem e diretor que, em época em que toda e qualquer pessoa parece já ter aprendido a ser personagem profissional, é de rara organicidade. São momentos em que a projeção ganha força, talvez por eles dependerem mais da realização interna das cenas do que da sua posição na montagem. Ali, Rodrigo Siqueira consegue construir um universo de alguma atração – embora o poder de choque mascarado esteja bem mais íntegro em um filme como Nego Fugido (2009), de Cláudio Marques e Marília Hughes, e a autenticidade das personagens seja apresentada com maior rigor em A Falta Que Me Faz (2009), de Marília Rocha.
O problema da mentira, em Terra Deu, Terra Come, é menos ético do que formal. Mais do que escorar a fruição em um engano, a revelação do método como um plot twist final contradiz a própria lógica norteadora da obra. Pois o encantamento diante de filmes como Moscou (2009) ou A Pirâmide Humana (1961) só é possível porque a mentira (ou, como prefere Coutinho, “a regra do jogo”) é revelada de antemão. Sabemos da falsidade (ou melhor, do estatuto) do dispositivo, e ainda assim acreditamos piamente na veracidade daquilo que ele produz (pensemos, aqui, na perseguição na floresta de A Vila, de M. Night Shyamalan). Como diz uma das personagens de Edifício Master, isso só é possível enquanto ato de “um mentiroso verdadeiro”, reavivando o paradoxo hegeliano onde não há possibilidade de enigma maior do que a absoluta transparência. Em Terra Deu, Terra Come, a inversão de estrutura anula qualquer possibilidade de efeito: não há verdade possível se a mentira precisa ser travestida de verdade. O que há “de mentira” no filme (e que é sabido como tal pelas personagens) é acobertado do espectador com uma farsa de montagem, externa à encenação. A partir dela, não há verdade possível. Resta apenas um golpe à Poirot, onde a solução do caso se encontra em um lugar inacessível aos nossos olhos, e o jogo de estrutura se resume a produzir, para o espectador, algum torpor em seu próprio vai-e-vem.