Publicado originalmente na Cinética em Abril de 2010.
Fugindo do ouro
Eu, o Vinil e o Resto do Mundo nasce com uma série de problemas para resolver, algo que o filme até certo ponto transfere in natura para o espectador. A seu favor, há o movimento (anterior ao próprio filme) proposto na escolha do tema: a decisão de cobrir um importante campeonato de DJs de hip hop em São Paulo traz, em si, um enfrentamento a um panorama de produção documental conservador e extremamente refratário às influências externas, que ainda hoje parece obcecado com a pureza de um suposto paraíso perdido brasileiro, simplificando ao extremo os termos da produção da cultura. Esse problema o filme resolve com uma mudança de foco simples, mas essencial: importa menos o hip hop, em si, e mais a sua presença na vida daquelas pessoas. Temos, portanto, um documentário de personagens. Por outro lado, há uma ingenuidade embaraçosa na maneira como as diretoras lidam com esse imaginário cultural e, mais grave, como elas organizarão as falas de suas personagens.
Iconograficamente, Eu, o Vinil e o Resto do Mundo é de uma obviedade escolar: estão lá as tomadas em slow motion dos b-boys dançando em passarelas; as quadras de basquete; as visitas às lojas de vinis; uma montagem em stop motion com o toca-discos em primeiro plano, viajando por São Paulo como se fosse um disco-voador. Tudo isso, claro, sincronizado às batidas da incessante música incidental, com cortes ditados pela acentuação tônica do bumbo, em uma suposta irmandade temática (o filme respira junto da música) que prega para o convertido – vícios talvez explicados por Karina Ades já ter dirigido clipes de hip hop. São opções estranhas, pois parecem reivindicar para o filme a missão de não ser só um documentário de personagens, mas também uma espécie de press-release da cultura hip hop, de fazer a periferia de São Paulo se passar pelo Bronx. Para um filme que escolhe olhar para a presença do hip hop em vez de pensar o gênero musical em si, esse fascínio iconográfico não passa de um despropósito.
Mas esse abraço acrítico do clichê se torna realmente problemático quando transferido para a montagem dos depoimentos. Em um primeiro momento, Eu, o Vinil e o Resto do Mundo não passa incólume à “síndrome do Afroreggae”, onde a arte perde sua função auto-suficiente e, para usar um termo de Rancière, se torna ferramenta de “medicina social”. As falas – neste primeiro momento quase sempre previsíveis e, por isso mesmo, afirmativas de um status quo que se pensa denunciar – aparecem reunidas em blocos temáticos, que reduzem as personagens a questões que elas têm em comum.
Mas, mais do que isso, a ampla fragmentação dessas falas é um duplo suicídio estético. Em primeiro lugar, ela impede que, durante toda a primeira metade do filme, o espectador possa construir uma trajetória de intimidade com as personagens – aqui, estilhaçados em sua semelhança (de fala, mas também de cenário, de gestos, de vestuário, de uma demanda de personagem já cristalizada pela televisão, que os DJs reiteram por acreditar que é aquilo que se espera deles). Em segundo, ela mostra uma incompreensão da própria atividade que ela se dedica a filmar. Pois embora a montagem fragmentária seja um atalho falso de mimetização de um ritmo, ela inverte a natureza do trabalho do DJ: produzir, a partir do fragmento, uma impressão de continuum. O fascínio que surge dos planos das mãos dos DJs em ação não é da agilidade, do truque ilusionista, como parece pensar a montagem; mas sim da maneira como uma operação de recortes é capaz de construir um ritmo e uma melodia de fato íntegros. A rigor, o DJ mais técnico é o que consegue, pelo maior número de fragmentações e interrupções, criar a obra de fluência mais suave, cortando sem expor as cicatrizes. Em um possível paralelo com a montagem narrativa do cinema clássico, o DJ mais ábil é o que melhor assimila a necessidade do corte dentro da construção desse continuum – ideologia que, como aconteceu com os cinemas novos, logo produziria seu reverso irônico: os DJs que querem exatamente revelar o corte e suas emendas, como fez o Girl Talk na micromontagem de Secret Diary.
Esse descompasso entre diretoras e objeto é de base, e por isso mesmo latente ao longo de todo filme. Mesmo quando as personagens se desvencilham da necessidade de preencher expectativas e começam a falar daquilo que realmente é importante para elas, os depoimentos sobrevivem com uma força crescente que é quase alienígena ao próprio filme. É sintomático, por exemplo, que todos os DJs relatem como o momento da anunciação de sua vocação um choque estético desinteressado (todos eles se descobrem apaixonados enquanto espectadores de um outro DJ, para então decidirem sua vocação), mas ainda assim o filme muito raramente busque esses momentos nas platéias das batalhas de DJs, isolando os músicos (ou cientistas, como um dos personagens prefere dizer) em um trono de exibicionismo e autismo técnico. Os personagens, muito conscientes da razão de sua atividade, dão pistas constantes para o ouro que as diretoras parecem nunca querer buscar, talvez por não acreditarem realmente que esse ouro exista.
Ainda assim, Eu, o Vinil e o Resto do Mundo sobrevive – em especial em sua segunda metade – pela carga emocional natural daqueles personagens e das situações (de vida) em que se meteram. Pois ser DJ não é promessa de um futuro melhor (pensemos aqui nos jogadores de futebol em Fora de Campo, de Adirley Queirós); muito pelo contrário, é a opção kamikaze pela falta de futuro em uma sociedade regida pelo capital, optando por uma crença artística e cultural que se sabe marginalizada e cuja única satisfação possível é o envolvimento na própria realização e o eventual reconhecimento dos seus pares (para um filme de competição, é comovente que o sentimento predominante seja o da camaradagem). Daí que o momento mais forte do filme seja justamente no encontro de uma possibilidade de narrativa de anti-herói, que é quando o DJ Rm é selecionado para uma competição internacional, onde se classifica entre os 12 melhores DJs do mundo. Esse momento é forte não só por alcançar o ápice declarado por todos os personagens ao longo do filme, mas principalmente por evidenciar a crise do pós-filme, onde esse ápice de reconhecimento precisa bastar em si mesmo, pois seu valor não é percebido pela comunidade (no caso, o país) do próprio artista. Há uma inegável nobreza nessa entrega desinteressada, pois, no dia seguinte, aquelas mãos mágicas e que transpiram potência voltarão às linhas de montagem e às máquinas de fotocópias e encadernações – ou, como diz a melhor metáfora de todo filme, voltarão a fazer anéis de cobre que, polidos à perfeição, perdem o brilho no exato segundo em que a pessoa para qual ele foi feito o coloca no dedo.