Skip to content

Golpe de vista

Publicado originalmente na Cinética em Abril de 2010.

A câmera e o seu lugar em A Serious Man; A Single Man; e Shutter Island

Há ao menos um risco e um desafio claros quando se fala da voz narrativa no cinema. O risco, como é comum nas trocas entre as artes, é a importação de um conceito literário para o cinema não se dar com real suavidade. Vem daí a necessidade de lascar as pontas de ambos para fazer com que os encaixes se complementem, e uma figura reconhecível possa surgir do encontro. Já o desafio, ele é o próprio risco: é justamente nesse processo de lapidação, de destruição intencional, que o pensamento pode produzir saltos, e as artes podem buscar ar fora dos limites de seu campo. A determinação precisa de uma voz narrativa e sua localização dentro de um filme é um desejo problemático, pois compromete a especialidade da câmera como comentarista da ação. Como bem comparou o crítico José Carlos Avelar, em um debate na Mostra de Tiradentes de 2009, a câmera de cinema parece incorporar a função do coro na tragédia grega, se assumindo como uma entidade externa que tem a autonomia de comentar criticamente o que é encenado (a camera-stylo, de Astruc) enquanto determina a própria encenação. Existem, porém, cenas específicas – e em certos casos até mesmo filmes inteiros – que negam essa vocação comentarista, confinando a câmera a delimitações do olhar claramente especificadas.

É um tanto surpreendente, portanto, que o circuito exibidor coincida três filmes que, de alguma maneira, tensionam essa instância enunciadora: Um Homem Sério (2009), de Joel e Ethan Coen; Direito de Amar (2009), de Tom Ford; e Ilha do Medo (2010), de Martin Scorsese. Embora não recorram sistematicamente à câmera subjetiva, a localização precisa da “voz” narrativa se torna crucial para a experiência dos filmes. Ainda que não sejam exatamente obras exemplares dentro da história do cinema, é bastante revelador – dos problemas e das soluções – pensá-los por uma mesma chave, um mesmo elemento de construção. Mais do que tratados metodológicos, são três obras que em alguma medida suspeitam da livre transitoriedade da enunciação, convidando o espectador a questionar (ou ao menos se atentar para) a invisibilidade da onisciência, dando a quem diz igual importância ao que é dito.

De fora para dentro

Se todo novo filme de Joel e Ethan Coen ressuscita a crítica pronta de que os diretores usam suas personagens como marionetes, Um Homem Sério se coloca bem adiante dela. Sim, são mesmo marionetes, e aqui estão seus fios – e mais: vejam logo o titereiro que os aciona. Isso é menos uma mudança de rota, e mais um esforço de clareza (ou, é possível argumentar, de didatismo): a encenação dos Coen nunca esboçou qualquer vontade de se fazer espaço de reprodução de uma sensibilidade humana nas personagens, onde a verossimilhança é tomada como uma questão de caráter. Para eles, a cena sempre foi um campo de batalha entre as personagens e a instância realizadora. Se há uma crise no cinema deles é justamente a das personagens diante da aleatoriedade dos acontecimentos nos quais elas são envolvidas – acontecimentos que, sim, foram escritos e arquitetados para anular qualquer leitura causal, ou qualquer impressão de ordem e harmonia que não seja estética.

Pois este novo filme dos Coen faz dessa crise sua própria motivação: o que temos é um personagem questionando a ausência de lógica dos autores de sua própria narrativa (para ele, Deus; para nós, os próprios diretores). “Aceite o mistério”, diz ao protagonista o pai do estudante coreano. Joel e Ethan constroem um mundo onde as personagens são corpos estranhos condenados ao expurgo (lembremos de um plano de Gosto de Sangue em que a câmera precisa corrigir a rota de um travelling para driblar um corpo caído ao chão, retomando seu caminho inicial após saltar seu “obstáculo”), onde o traçado circular do rosto bagunça a geometria rígida da composição em linhas retas, e os corpos se tornam empecilhos na harmonia dos elementos visuais no quadro. Esse embate entre criador e criatura é muito comumente visto como uma camisa de força para as personagens, mas na verdade ele reverencia a autonomia que elas têm de colocar em risco todo o universo que foi construído elas habitarem – ou melhor, ajudar a compor. É o cinema da escritura de pena duríssima que, ainda assim, precisa absorver a contingência – aquilo que deveria ficar de fora do filme, mas que força sua passagem por brechas invisíveis, e que precisa ser domado para não dispersar o sentido original. É um cinema essencialmente metalinguístico, no qual os diretores são sempre as personagens principais.

A questão enunciadora de Um Homem Sério é justamente a de definir esse narrador como um outro, como uma força absolutamente externa às personagens. É expressivo que uma das melhores sequências do filme seja justamente a que mostra o protagonista tentando se apropriar dessa onisciência narrativa: quando sobe no telhado de sua casa para ajustar a antena de televisão, ele pode olhar aquele mundo de cima, do lugar privilegiado de seus criadores. A visão privilegiada é a mais banal: vê-se apenas a vizinha nua, tomando sol no jardim. O importante, no caso, é o privilégio em si. Mais expressivo ainda é que a cena mais problemática seja justamente a que promove uma maior aderência da câmera aos olhos de uma personagem: a sequência do Bar Mitzvah, com sua tentativa banal de mimetizar o calor interno à personagem (no caso, um desfoque parcial da tela que emula a visão entorpecida de quem acabara de fumar maconha), sensivelmente menos envolvente do que a frieza distante e clínica, produtora de todo o humor da dupla.

Um Homem Sério é um filme desestabilizador sempre que afirma essa autonomia criadora, onde a única descoberta mais atordoante do que a completa falta de sentidos do mundo é a percepção de que essa falta de sentidos tem uma autoria. O mundo é um inferno, mas pior: ele só o é porque alguém quer que assim ele seja. O acaso, no cinema dos Coen, se dá apenas dentro da encenação – vem de fora para dentro, é um acaso produzido. O que resta é a falência interna da narrativa de herói, pois ao mesmo tempo em que sua estrutura é absorvida na constante promoção de dificuldades para as personagens, ao fim elas nunca poderão ser vencidas. Quando tudo parece solucionável, ou ao menos contornável, pode-se sempre trazer um tornado para varrer a cidade. Os filmes de Joel e Ethan Coen repelem na própria mise en scène, em um rigor que nos joga sempre para fora do filme, onde a falta de sentidos diegética se choca com controle minuncioso e absoluto na composição dessa diegese. É um mundo construído para que a câmera o veja de fora.

Dentro, de fora

Direito de Amar, filme de estréia de Tom Ford, adota um procedimento de narração raro e um tanto ambicioso – que tem como par contemporâneo (um pouco melhor resolvido) o argentino Salamandra, de Pablo Aguero. Sua enunciação não é completamente externa, como no filme dos Coen, nem assume um ponto de vista realmente estrito – embora exista uma clara fidelidade ao seu protagonista. O que existe é uma flutuação bastante complexa – pois metódica – cujo mais célebre equivalente literário seria Retrato do Artista Quando Jovem, de James Joyce. Embora o livro seja conhecido pela maneira como Joyce controla as modulações de linguagem de cada capítulo de acordo com a idade do seu protagonista no período (o primeiro capítulo, por exemplo, é todo escrito para se aproximar da linguagem de uma criança), o que é realmente surpreendente é que esse procedimento se dê mais como contaminação do que como aderência, pois se mantém sempre na terceira pessoa. Diferente, por exemplo, de um O Som e a Fúria – livro de Faulkner onde cada capítulo é contado por um diferente integrante de uma família, respeitando suas particularidades de expressão – Retrato do Artista Quando Jovem se aproxima das personagens sem nunca abdicar da autonomia do narrador, deixando que essa terceira pessoa se aproprie da linguagem de quem ela observa.

Cinematograficamente, Direito de Amar faz isso no equilíbrio entre a estilização externa do plano (estamos em um filme que quer se mostrar de época, dourando uma classe, uma questão e um espaço muito específicos) e a pulsão pessoal que deforma os contraplanos, se irmanando ao olhar do protagonista (os olhos, inclusive, são leitmotif constante em todo o filme). O binômio alguém olha/algo é olhado (plano/contraplano) traz uma sensível mudança de registro de um para o outro, onde quem olha é filmado de forma razoavelmente naturalista (dentro dos parâmetros estilizados do filme), mas o objeto olhado aparece reinterpretado, erotizado pelo olhar do protagonista que o media. É como se os filmes de Terence Davies ganhassem seu contraplano – no caso, o do sujeito que olha. O mundo particular deixa de ser apenas olhado; ele olha de volta. Essa intermitente imanência, porém, se revela bastante sintomática. Após a morte de seu namorado, George (Colin Firth) decide viver um último dia antes de se matar. Sua última caminhada pela terra é movida pela vontade de conferir sentido àquele doce sofrimento. Afinal, George é um professor de literatura, homem cultivado por índices primários de um desejo de sofisticação: a literatura de Aldous Huxley, o charme easy listening de uma “Stormy Weather”, o isqueiro de ouro que acende cigarros cor-de-rosa, a metáfora grosseira que equivale uma relação homossexual na década de 1960 à vida em uma casa de vidro.

Não há, portanto, qualquer possibilidade dessa personagem habitar um filme dos Coen: sua vida precisa ter sentido, e esse sentido precisa ser fechado e facilmente decodificado em sua aparente sofisticação. Mas o que faz a operação de Retrato do Artista Quando Jovem valiosa é justamente o ruído que existe nessa apropriação de linguagem; o momento em que o narrador se revela crítico, seja pelo distanciamento ou pelo próprio verniz paródico dessa apropriação. Irmanar-se a um personagem não significa curvar-se a ele. O que havia de desconfiança da criação burguesa em Retrato (e atinge sua plenitude em Ulisses) se rende ao vazio celebratório do intelectual de gabinete em Direito de Amar. Sobrevive uma dupla admiração: a de George por si mesmo, e a de Tom Ford por todo aquele universo dourado, vinilado em luz difusa, de roupas elegantes (Tom Ford tem uma carreira bem sucedida como estilista) e cabelos bem cortados.

O distanciamento do plano/contraplano é, em um primeiro momento, necessário para estabelecer o trajeto alegórico como uma interpretação, uma reescritura pessoal da personagem. Feito isso, ele se perde uma vez que percebemos o quanto Ford também idealiza aquele universo. Isso se dá principalmente na escritura dos diálogos – pendendo sempre ao proverbial, ao alegórico, sem qualquer fuga possível da interpretação edificante do protagonista – mas também em uma oferta de metáforas sem qualquer ambiguidade, onde um mergulho no mar marca o desejo de retornar ao útero, e a morte é anunciada por uma coruja, e chega ao protagonista por um beijo. Um filme que começa fortemente calcado na troca de olhares, aos poucos se dilui em sua aderência. A única ironia possível está na morte que chega quando se reencontra o prazer de viver. Até ela, porém, satisfaz o desejo do protagonista.

De dentro para fora

Ilha do Medo, de Martin Scorsese, faz uma operação reversa. Quando entramos na ilha, Scorsese nos instala na mente de seu protagonista. O nível dessa exclusividade enunciadora, porém, só será revelado bem adiante – o que faz da fruição do filme uma releitura de si mesma. Ilha do Medo existe todo em função desse recuo de ponto de vista, que é o momento exato em que nossas expectativas são desmontadas, e somos reapresentados ao filme que assistíamos. A câmera, aprendemos, nunca se separou de Teddy (Leonardo DiCaprio); é seu olhar que determinara toda a encenação – seja na maneira como um fósforo riscado ilumina magicamente toda uma cela, ou no fragilíssimo simbolismo que traz de volta a lembrança da mulher, com golpes delicados de superexposição e uma estilização de cena francamente banal. Há algo de escroque nessa quebra de fidelidade, que lava suas mãos de uma encenação quase sempre ineficaz, onde cada ilustração se justifica pela loucura de uma personagem.

Se vemos em tela uma série de recursos de dramaturgia que beiram o primário, esse recuo empurra sua responsabilidade diegética para uma das personagens. O filme é primário pois a auto-dramaturgia da imaginação de seu protagonista assim o determina. Neste momento, a câmera é capaz de abandoná-lo, de olhá-lo criticamente de uma posição externa que aparecia no filme apenas em breves lampejos (a cena em que uma das pacientes bebe água sem um copo, por exemplo – ainda assim, cena enigmática demais para configurar um distanciamento de fato). O que há de realmente problemático em filmes que partem dessa necessidade de um “golpe” no espectador, é que toda sua realização se transforma em escamoteamento – uma vez que o diretor sabe de algo que não podemos saber antes da hora. É preciso despistar o espectador, alimentá-lo de pistas falsas para, ao final, afirmar a soberania da instância enunciadora em uma sequência explicativa (algo que é tão problemático aqui quanto em um Amnésia, ou na sequência final do Psicose original, por exemplo). Em contraponto, tudo que precisa ser explicado não pode admitir qualquer ambiguidade – limite que tem seu exemplo mais gritante na caminhada final pelo jardim do hospital de um enfermeiro, carregando os instrumentos para a lobotomia quando vai buscar o protagonista.

A sobrevivência de filmes como esses depende do quanto esse escamoteamento pode ser envolvente em si mesmo (pensemos, aqui, em O Sexto Sentido, de M. Night Shyamalan), e do quanto o golpe explicativo ainda suporta de ambiguidade – primazias das quais Scorsese abre mão ao se irmanar indistintamente à visão torpe e compensatória de sua personagem, trocando os prazeres de construção do próprio filme por uma fidelidade conceitual. São filmes difíceis de se criticar, pois todas as brechas de sua encenação estão devidamente protegidas por seu arcabouço conceitual. Só a crítica política é possível. Ao fim, Ilha do Medo faz um mesmo movimento de afirmação enunciadora que Um Homem Sério (nos Coen, ponto de partida; aqui, de chegada), mas que acaba produzindo um sentido reverso: reafirmar a autonomia da instância enunciadora. Mas lá, onde havia transparência, agora há encobrimento. É revelador, portanto, que a personagem principal opte, ao fim, por sustentar-se em uma mentira, mesmo que ela a leve à “morte” – ou, como escreve Slavoj Zizek a respeito de O Cavaleiro das Trevas (2008), “A Mentira precisa ser elevada a Verdade”. Foi ela, afinal, o valor determinante da lógica regente de todo o filme.

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *