Publicado originalmente em antigo blog pessoal em Março de 2010.
Há equívocos um tanto incontornáveis nas duas leituras predominantes de Avatar na maior parte da crítica. A primeira, de que seria uma fábula banalmente ecológica. Esse equívoco se evidencia no nervo central do trabalho tecnológico do filme: Pandora é uma grande floresta artificial. Não há, portanto, defesa de um naturalismo enquanto tal (pensemos aqui em Mal dos Trópicos, por exemplo), pois James Cameron reconhece que a questão é menos de uma integração com um mundo natural, e mais com o mundo que existe à volta dos homens – seja ele como for. Interessa-lhe muito menos a floresta, e mais a sua representação. Assim como acontecia em Fim dos Tempos (2008), de M. Night Shyamalan, se há uma consciência de integração ecológica em Avatar, é menos por um viés ocidental do termo, e mais pela temperança resistente no tao – onde a natureza é ampliada ao Absoluto, e a integração do homem não é exatamente com o verde, mas sim com o mundo em que ele vive, tal como ele se apresenta (pensemos, aqui, no cineasta que melhor fez o cinema encarnar esta idéia: Yasujiro Ozu). No caso de Avatar, a integração que interessa a James Cameron tem um caráter metalinguístico, pois se dá entre a personagem (o próprio avatar – ser criado a partir da alma que o habita, mas não só) e a cena onde ela se instala (Pandora – o próprio espaço da criação).
A segunda leitura é a simplificação florida de que o filme teria uma carga belicista – como se Avatar fosse um elogio às avessas aos marines, e todas as guerras fossem injustas e condenáveis. Lembremos, porém, que Jake Sully – o fuzileiro que, por ser jovem, concentra todas as atenções e esperanças do filme – nos é apresentado partido, alijado de suas forças reais, condenado a uma cadeira de rodas. O marine interessa menos como figura real (pois ela perdeu sua força de atuação) e mais como um arquétipo a ser reintegrado ao mundo ficcional (lembremos, aqui, da maneira como Rossellini trabalhava ícones da Igreja Católica não por acreditar em sua literalidade, mas sim por entender o seu poder como meio de transmissão direta de um sentimento ao espectador). É a ficção que tem o poder de devolver os guerreiros ao seu lugar no mundo, e diferenciar os marines dos guerreiros Na’vi é uma simplificação grosseira que ignora a correspondência de funções em suas respectivas sociedades, como se as bombas trouxessem uma violência ausente nas flechas envenenadas (A República volta a se fazer leitura essencial).
O que realmente me parece notável em Avatar é a percepção de que a harmonia só é alcançada se assimilarmos (sem neutralizar) a perturbação do corpo estranho. Jake Sully é o intruso que se faz messias, o mestiço, o sujeito que domará a ave dos deuses, aquela que introduz o vermelho ao filme, e que fere (ou melhor, redefine) a integração cromática dos verdes e azuis. O messias é a figura desestabilizadora, o farsante, o personagem que se revela enquanto tal. Essa integração entre dois mundos passa, em grande medida, pela maneira como natureza e cultura se complementam (é possível ver, em Avatar, um cruzamento de primorosa lisura entre Kracauer e os formalistas), e como uma é capaz de salvar a outra (Jake Sully ganha vida em Pandora, da mesma maneira que, como um messias, conserva a vida de Pandora). Avatar promove, com isso, uma reinserção da filosofia no mundo – seja ela de Platão ou de Jean-luc Nancy. A alegoria, porém, só é possível em sua absoluta literalidade: quando James Cameron diz “guerra” e lemos “Guerra do Iraque” (assim como ele diz “guerreiro”, e lemos “fuzileiro naval norte-americano”; ou diz “natureza” e pensamos em “floresta”), estaremos reduzindo o universal a específico, fazendo, do complexo, o que há de mais banal.