Originally published at Cinética in Janeiro 2010.
Breaking isolation
In a year when so many new films screened at Mostra Tiradentes seemed largely paralyzed by an indeterminate anxiety and a sense of isolation, the screening of A Alma do Osso (The Soul of the Bone), a film by Cao Guimarães originally released in 2004, felt providential. It takes no more than a few minutes to realize that the director’s camera will follow closely a character (Domingos Albino Ferreira, popularly known as Dominguinhos da Pedra) who takes these very feelings to the utmost extreme. Living completely disconnected from society, he engages only with a series of unique rituals, following strict rules of conduct. However, there are essential differences that take The Soul of the Bone far beyond the edge of the quicksand pit that these films usually set as their final destination—differences that would remain operative in Andarilho (Drifter, 2007), shifting the focus from the social to the topographical.
We spend the first half (or more) of the film following the hermit protagonist, and the camera works to highlight how extreme his isolation is. At first, the film seems to want nothing more than be with this character, creating a portrait that, while not exactly exoticizing, sets him apart for his glaring singularity. The process is stretched to the limit, gradually accumulating in our bones, until the proximity of observation is suddenly replaced by words. The decision to push the gaze to its breaking point increases the weight of orality—the bold choice to open one’s mouth in a world dominated by silence. The character then tells the story of a man who once dreamed he was going to die from a lightning strike, and who built a house entirely made of metal to protect himself. The story comes as a possible explanation for the character’s unusual life choices, giving narrative justification for all the bits of metal he accumulates in his cave. But then, with the sharpness of a cut, the film suddenly gets a glimpse behind the curtains of that fabulation: the character starts telling the director about his stay at a psychiatric hospital where he underwent shock treatment.
Cao Guimarães creates a centrifugal succession of procedures: the situation of the character lends meaning to his fabulation, which in turn is determined by a previous situation. There is therefore an impulse to locate the origin of the isolation, as if cinema was a pathologist trying to look inside the other with their own eyes. The character’s emotional state becomes more expressive for what it can reveal about the world that conditions it into existence. There is, therefore, a subtle inversion of linearity that, despite pulsing closer the rhythm of life than to cinematic time, can only be achieved by cinema through this reorganization of lived events into a form of narrative. For the film, however, it is not enough to merely detect the reasons for this existential crisis, and what it reveals about one character, or even the world; it is necessary to challenge its authority. In the encounter between a man who has removed himself from society and an audience who listens, some fracture can finally be repaired.
This reparation, this reconnection with the world, will not only be provided by cinema, but can actually only come through cinema. Near the end of the film, the old man shows the director the exact place where he hides a knife and a bag of money (his strength, his gold, his fortune). But he doesn’t just show it; he pulls the director’s hand from behind the camera into the frame, forcing him to make direct contact with the world being filmed, inhabiting the scene to partake in this secret, this encounter, this exchange. The connection goes both ways: Cao Guimarães reciprocates that gesture of trust by showing the old man the scenes he had been filming. It is an extraordinary ending which dislocates so many presumptions hanging above contemporary cinema – from the self-congratulatory defense of the uselessness of art, to the poetic impulse that ends up turning the density of the world into a mere dance of visual forms. It is all the more ironic that some of these characteristics have often been erroneously associated with Cao Guimarães’ cinema. This sense of reparation has little to do with the social doctoring that relegates art to occupational therapy. What we see here is an acute awareness of a sense of purpose that, before being affirmed within the shot, is behind the very existence of the film: there is a fracture in the human that only art is capable of repairing. The Soul of Bone is a film that never rejects or underestimates the magnitude of its responsibilities.
* * *
Publicado originalmente na Cinética em Janeiro de 2010.
Quebrando o isolamento
Num ano em que a produção contemporânea exibida em Tiradentes aparece, em larga escala, paralisada por uma angústia e um isolamento de origens imprecisáveis, é providencial que A Alma do Osso, filme de Cao Guimarães originalmente lançado em 2004, tenha uma sessão especial bem no meio da programação. Pois logo nos primeiros minutos percebemos que o filme acompanhará de perto uma personagem que leva esses sentimentos ao extremo absoluto, vivendo desligado da sociedade, com uma série de rituais próprios e regras de conduta que lhes são exclusivos, particulares e claramente operativos. Existem, porém, diferenças essenciais que levam A Alma do Osso bem adiante do poço movediço onde tais filmes normalmente ambicionam chegar, e que Cao Guimarães continuaria a trabalhar posteriormente em Andarilho – mudando o recorte do social para o topográfico.
Passamos a primeira metade (ou mais) do filme acompanhando o protagonista eremita, e a câmera constrói sinais que evidenciam o quão extremo é este isolamento. Até aí, o filme de Cao parece não querer mais do que acompanhar essa personagem, apresentando-a em um retrato, se não exatamente exotizante, que a recorta por sua gritante singularidade. O processo é esgarçado até se acumular nos ossos do espectador, para então ser substituído pela palavra. O esgarçamento é essencial para sentirmos o valor dessa fala, dessa opção por abrir a boca em um mundo dominado pelo silêncio. A personagem conta a história de um homem que sonhava estar predestinado a morrer atingido por um raio, e que construiu uma casa de metal para se proteger. Teríamos ali uma possível explicação para a maneira como a personagem vive, mas depois nos é apresentada – na secura dos cortes – a experiência que gerara a fabulação: a personagem começa a falar de quando fora internado em um hospital psiquiátrico e passara por um tratamento de choques elétricos.
O que Cao Guimarães realiza é uma sucessão centrífuga de procedimentos: a situação da personagem confere sentido à sua fabulação, que tem significados determinados por uma situação anterior. Há, portanto, o ímpeto em localizar a origem do isolamento, como se o cinema ganhasse uma capacidade legista de olhar por dentro do outro com seus próprios olhos. Importa menos o sentimento ou o estado, e mais o que ele pode revelar sobre o mundo que o obriga a se manifestar. Com isso, temos uma sutil inversão de linearidade que, mesmo sendo do tempo da vida (e não do tempo cinematográfico), só pode ser realizada pelo cinema. Não basta, portanto, perceber a crise, pois ela só interessa enquanto reveladora do sujeito e do mundo; é preciso rasgá-la ao meio, derrubá-la de seu trono, proporcionando – com o encontro com a platéia que ouve, em tela, a lenda contada pelo protagonista – a chance de ela ser reparada.
Mais extraordinário, porém, é que essa reparação, essa reconexão com o mundo, não só será proporcionada pelo cinema, mas virá literalmente dentro dele. Próximo ao final do filme, o velho ermitão mostra para o diretor o lugar exato onde ele esconde um canivete e uma sacola de dinheiro (sua força, seu ouro, sua fortuna). Mas não apenas mostra; puxa a mão do diretor para dentro do quadro, obrigando-o a fazer contato direto com o mundo que filma, a se materializar dentro da imagem, a habitar a cena e se responsabilizar por este segredo, este encontro, esta troca. A conexão é de mão dupla: de dentro para fora, e de fora para dentro. Cao Guimarães retribui a confiança, mostrando ao velho as cenas que ele vinha filmando. Esse final é extraordinário, pois derruba uma infinidade de falsas máximas que pairam sobre o cinema contemporâneo – da defesa bufa da inutilidade da arte, à poesia que esvazia o que filma em mera dança de formas visuais – e que muitas vezes foram, erroneamente, associadas ao cinema de Cao Guimarães. Não confundamos, porém, a atenção para com as rachaduras do espírito com a reparação sociológica das ONGs e da arte enquanto terapia ocupacional. O que vemos aqui é uma consciência aguda de finalidade que, antes de ser afirmada dentro do plano, se realiza na própria existência do filme: há uma fratura no homem e a arte é capaz de repará-la. A Alma do Osso é um filme que nunca nega ou subestima o tamanho de suas responsabilidades.
Pingback: Otto (2012), Cao Guimarães - FABIO ANDRADE