Publicado originalmente na Cinética em Janeiro de 2010.
Afetos, medidos e desmedidos
As personagens de A Falta que me Faz nos são apresentadas pelo momento em que marcam na pele, com uma agulha, nomes e símbolos de suas respectivas (e, mais à frente saberemos, cambiáveis) paixões. O plano é ilustrativo de uma abordagem que será predominante em todo o filme, e que determinará as relações entre a equipe e as personagens. Como em Merleau-Ponty, estar no mundo é ser alvo de afetos; viver precisa deixar marcas, sejam elas nos corpos das personagens, nas paredes, nas portas dos armários, nas árvores ou no próprio filme. Quando a experiência, em si, não deixa marcas físicas, é preciso produzi-las, expressando no corpo – e no plano – o que está impresso no espírito. Não é possível fugir dos afetos.
Oferecer-se aos afetos, de fato, é ponto de partida. A Falta que me Faz converte essa disposição em uma política de encenação. Há dois momentos especialmente ilustrativos. Em um deles, ouvimos Priscila contar que Valdênia roubou seu namorado. Quando ela conta isso para a câmera, sentada à beira de um lago, ela arremessa constantemente pedras para o extracampo. Esses elementos que a personagem joga para fora do quadro não só denotam uma enorme soberania em sua relação com o filme, como reproduzem a determinação das meninas em deixar isso fora do filme, pois está fora da relação delas (Priscila e Valdênia voltaram a ser amigas depois do episódio). Um limite é imposto, da personagem para a câmera, e da câmera para a personagem. Em outro momento, uma das garotas fala sobre a morte do pai. Sentada de costas para a janela, seu rosto está completamente escuro, encoberto pelas sombras. O chiaroscuro confere uma solenidade doída à cena, que é quebrada sempre que a menina volta o rosto para a luz, e percebemos que ela está sorrindo.
Vem daí um dos maiores trunfos do filme: perceber a ambiguidade daquelas situações, daqueles sentimentos e daquelas personagens, e tentar reconstruir essa ambiguidade cinematograficamente. A Falta que me Faz é um filme raro por se lançar no desafio do óbvio: uma vez que se percebe um sentimento que diz íntegro respeito ao mundo (que, no caso, é ainda mais fortuito por ser um documentário que encontra seu tema quase casualmente), é preciso buscar maneiras de representá-lo, de devolvê-lo ao mundo de forma potente, de restaurar o seu sentido em imagem. Importa menos que se ame este ou aquele rapaz, e é natural por isso que eles sejam quase deixados fora do filme. Afinal, é possível acreditar em casamento de conveniência e, ao mesmo tempo, desejar rasgar o nome de cada namorado no próprio corpo. O que interessa é justamente a vontade de se marcar, de viver intensamente cada experiência – cada paixão, cada tentativa de suicídio – e perceber que o todo (a vida das meninas e do filme) é constituído por essas marcas, esses rasgos, que só nos chegarão inteiros se acontecerem, também, dentro da cena.
Marília Rocha parece chegar a A Falta que me Faz livre de si mesma. Enquanto Aboio (2005) respondia diretamente a todo um repertório visual consolidado pela Teia, e Acácio (2008) parecia ter como preocupação central justamente se distanciar o máximo possível dessa origem, A Falta que me Faz vem com o vento, entregue ao mundo que filma e à tarefa de captá-lo em toda a sua complexidade. A diretora se coloca diante de um mundo potente (quatro moças adolescentes que moram na cidade de Curralinho, no interior de Minas Gerais) e a filmagem responde a esse mundo, seja estabelecendo relações visuais entre as personagens e a geografia do lugar, criando sentidos que não estão na imagem bruta natural (e há de se destacar a quase mística capa prateada da fotografia de Alexandre Baxter e Ivo Lopes Araújo no filme – que, junto com o curta A Montanha Mágica, de Petrus Cariry, confirma Ivo como um dos fotógrafos mais instigantes do cinema recente brasileiro), seja deixando-se contaminar por aquele universo, em uma intimidade de mão dupla que faz as personagens questionarem a equipe – com curiosidade pelo mundo distante (mesmo que, ali, tão próximo) que ela representa.
Pingback: The Earth Giveth, The Earth Taketh Away (Terra Deu, Terra Come, 2010), Rodrigo Siqueira - FABIO ANDRADE