Publicado originalmente na Cinética em Novembro de 2009.
De onde partimos
Não é raro ver a idéia de uma “história do cinema” ser confundida com uma “história dos filmes”. Embora plenamente defensável, a operação não deixa de ser metonímica, pois o cinema não é somente os filmes. É possível traçar histórias do cinema por inúmeros caminhos – indo da tecnologia à crítica; da grande política aos micro procedimentos – reconhecendo que eles se cruzam com a mesma frequência com que divergem, e que configuram relações diferentes dependendo de seus pares combinatórios. Nesse sentido, a presença em um festival como o Cine Esquema Novo traz constatações que, mesmo óbvias em essência, muitas vezes se perdem na prática cotidiana. Pois quando nos vemos diante de uma seleção tão criteriosa (apenas 4 longas e 22 curtas metragens figuraram a competição em 2009) é inevitável pensar que, naquele momento, os filmes – aqueles que normalmente ganham maior atenção dos críticos da Cinética – tanto manifestam algo de seu próprio espírito, quanto fazem parte de um mosaico maior que reflete as crenças da curadoria que os programou.
Diante de uma curadoria criteriosa, é inevitável que uma das primeiras relações críticas a se estabelecer com o festival seja justamente a de decodificar esse critério, tentando compreender suas motivações para identificar qual cinema ela pretende escrever. Afinal, a escrita do cinema não é feita pelos filmes, mas sim por instâncias externas que propõem uma organização deles – instâncias que incluem a crítica, a academia e também os curadores e júris de festivais. O embate crítico com um olhar que recorta filmes de suas próprias moradas, projetando-os como reflexo de uma crença de cinema que lhes é exterior (mesmo quando vizinha), se torna mais complexo por existir no epicentro de duas tensões: de um lado, o recorte de cinema proposto pela curadoria; do outro, o olhar do crítico que, muito inevitavelmente, usa os filmes também como ferramenta para identificar esse recorte.
Se o termo “curadoria” não se aplica a grande parte dos festivais de cinema realizados no Brasil, ele certamente o faz no Cine Esquema Novo. É nítido que o festival assume sua posição de instância legitimadora (decidir quais filmes poderão ser vistos naquele contexto) com enorme consciência, e esse olhar precisa ser pensado criticamente tanto quanto os filmes. A percepção de que existe uma curadoria vem justamente da identificação de que tal conjunto de obras funciona como uma proposição de cinema. O problema maior dessa abordagem é reduzir os filmes a sintomas do olhar de quem os programa – algo que pode ganhar contornos políticos intencionais quando aplicado a obras menos notáveis, mas que é um sacrifício bastante grave quando tratamos de filmes que movem impulsos críticos suficientemente autônomos. Em um festival como o Cine Esquema Novo – com os filmes que ele decidiu exibir, no recorte que lhes foi impresso – abandonar qualquer um desses dois caminhos parece um erro. Façamos, portanto, cada um à sua vez. Os filmes de maior impacto (a rigor, todos filmes de curta-metragem) vistos ou revistos no CEN 2009 ganharão merecida atenção individual em uma pauta sobre a forte safra corrente de curtas brasileiros, que em breve poderá ser lida na Cinética. Por ora, fiquemos com uma análise contextual que espero ser igualmente interessante para todas as partes envolvidas, e que faz com que a ida àquelas salas de cinema, naquele período de tempo, naquele espaço, se configure como algo em si.
Onde estamos
Um olhar atento à programação do Cine Esquema Novo 2009 perceberá o cinema brasileiro em uma encruzilhada. É notável a intenção de privilegiar realizadores com projetos estéticos que dialogam com alguns dos caminhos de cinema mais fortes produzidos hoje no mundo, em filmes muitas vezes marcados pela aparência de um rigor estrutural bastante consciente. Para além da bem vinda atenção ao entorno, é preciso cuidado, pois a filiação necessária a certos caminhos do cinema contemporâneo por vezes esconde uma avidez desmedida pela novidade. O apreço pelo rigor é sempre bem vindo, mas muitas vezes acaba nos oferecendo as intenções antes dos resultados. Por conta disso, até mesmo uma relação crítica com a curadoria precisa passar pelos filmes, pelos procedimentos que eles realizam, pelas direções que eles conferem – em uma via de mão dupla – ao próprio festival.
Curiosamente, a melhor ilustração de uma das correntes perceptíveis no festival vem de uma coincidência (tirando daí qualquer sentido de acaso, retomando o radical que co-incide) espaço-temporal. Pois próximo à sala principal do CEN, ocorria a mostra central da Bienal Mercosul 2009, reunindo trabalhos de artistas latino-americanos – em grande maioria, jovens. Em um dos galpões da Bienal, estava exposta a vídeo-instalação Autoconstrução: Um Diálogo Entre Angeles Fuentes e Rogelio Cruzvillegas, do mexicano Abraham Cruzvillegas. A estrutura da instalação é mais reveladora do que seu conteúdo: duas telas são montadas uma de frente para a outra, com bancos sem encostos colocados entre elas. Em uma das telas, Cruzvillegas projeta uma entrevista feita com seu pai; na outra, uma realizada com sua mãe. A distribuição espacial é mais importante do que o assunto, pois o artista obriga o espectador a fazer sua própria montagem dos depoimentos. Eles são filmados em protocolos visuais semelhantes, próximos das convenções do telejornalismo (plano médio entre a frontalidade e o perfil, onde os entrevistados falam não diretamente para a câmera, mas para um entrevistador que está ao lado dela), e o posicionamento das telas exclui a possibilidade de convivência e articulação prévia dos dois vídeos. As duas telas têm o mesmo efeito de uma, pois só podem ser vistas uma a cada vez. O espectador precisa alternar o olhar entre elas, determinando um sentido às imagens – intenção que já está expressa, mesmo que um pouco torta (pois não há autoconstrução de fato) no título do trabalho.
Não tivemos nada parecido em estrutura física no CEN 2009 – a rigor, ainda um festival tradicional de cinema – mas o impulso artístico do trabalho de Cruzvillegas parecia partilhado por alguns dos filmes em competição. Estamos diante de um conceito de artista que não mais pensa sua obra como uma produção de discursos em relação ao mundo, e se aconforta como um produtor de indefinição. Confunde crise com incerteza, descontrole com ausência. Essa indefinição não é exatamente uma radicalização da obra aberta, pois em diversos casos mal existe uma obra. O que resta é um exercício lúdico, um jogo de montar que pode afirmar tanto algo quanto o seu contrário, fugindo dos significados estanques, delegando toda a responsabilidade a quem se relaciona com a obra. O rigor conceitual se sobrepõe ao rigor realizador, pois não há mais realização; o que sobra são partes articuláveis, e não partes articuladas para se produzir um determinado sentido.
A alternativa ao discurso do não-discurso ficou especialmente clara em duas das cenas mais fortes vistas no festival que, embora bastante semelhantes entre si, apareciam em filmes de intenções distintas. Coincidentemente, são duas cenas musicais: a primeira, em Analogia do Verme (2007), de Carlosmagno Rodrigues e Cris Ventura, é de uma jovem cantando “The Boy With The Torn In His Side”, dos Smiths, na rua, sem acompanhamento musical; a outra é em Sweet Karolynne (2009), de Ana Bárbara Ramos, onde a menina protagonista canta “Love Me Tender”, de Elvis Presley, que toca diegeticamente ao fundo. São cenas construídas em torno de um mesmo elemento (uma canção), mas que se encontram pelas diferentes maneiras como suas personagens transformam aquilo que cantam. No caso de Analogia do Verme, o inglês da letra é deformado pelo carregado sotaque da atriz, que canta para o rapaz ao seu lado, produzindo um comentário sobre a cena principal do filme (não seria o rapaz com o espinho no flanco o próprio Carlosmagno, com a faca fincada em seu braço?); em Sweet Karolynne, “Love Me Tender” se torna paisagem guia para uma língua inventada, de sonoridades similares porém reconfiguradas, pois a menina não fala ou compreende o inglês original da canção. Em ambos os casos, uma matéria anterior pré-definida ganha uma nova configuração estética, que é impressa pelo indivíduo que se relaciona com ela dentro da obra de arte. Lembremos, aqui, do inventário de termos de Tatarkiewicz, que buscava correspondentes mais próximos de expressões da Grécia antiga para idéias correntes em nosso tempo: o conceito de obra de arte seria plásma, literalmente “aquilo que é modelado”.
Para onde vamos?
Ao longo do CEN 2009, foi possível ver filmes que se posicionavam em pontos distintos entre a indefinição completa de Cruzvillegas e a língua inventada de Karolynne. No meio dessas duas correntes, estava o exemplo sintomático de Ressaca (2008), segundo longa-metragem do carioca Bruno Vianna. Sintomático, pois tanto a curadoria quanto os júris (tanto o oficial quanto o jovem, que deram a Ressaca o prêmio de melhor filme) fizeram questão de apontar literalmente uma singularidade determinante para sua eleição: a montagem em tempo real que o diretor realiza em cada exibição do filme.
Usando um software desenvolvido especialmente para o projeto, Bruno Vianna reorganiza as sequências durante a exibição, fazendo com que o filme mostrado seja sempre único. O problema maior é que Ressaca não é, nem quer ser A Idade da Terra (1980); ao contrário, sua dramaturgia busca o convencional, deixando claro que os talentos mais fortes de Vianna estão na escrita das cenas e na direção dos atores. Por conta disso, a montagem instantânea se torna uma violência ao conteúdo de Ressaca. Sequências bastante fortes são sacrificadas por articulações confusas (quais articulações? não serão sempre diferentes?) de um material bruto que, tendo momentos realmente potentes, nem sempre é bom. E não é para isso, afinal, que deveria servir a montagem? Para determinar quais os momentos fortes, e quais as relações possíveis para que eles sejam de maior potência para o filme (além, claro, de jogar tudo que não presta no lixo).
Bruno Vianna não quer fazer nada disso – pois jogar algo no lixo em uma sessão para tirá-lo do lixo na outra não quer dizer nada – e, num jogo que só é lúdico para o próprio diretor (o que faz a comparação feita no site do filme com O Jogo da Amarelinha, de Julio Cortázar, especialmente equivocada) acaba nos oferecendo sequências irregulares, parcamente montadas. O que vemos de Ressaca nos indica haver ali acertos suficientes para render um bom filme narrativo, mas sua obsessão em se destacar por ser algo além disso acaba denotando uma grande falta de fé nessa possibilidade. Ser um bom filme narrativo parece não ser mais suficiente. É preferível não ser coisa alguma.
O mesmo, nesse sentido, poderia ser dito, em medidas diferentes, dos outros longas em competição: Loveless (2009), de Cláudio Gonçalves; A Casa de Sandro, de Gustavo Beck; e o coletivo Praia do Futuro (2008). No caso de Loveless, a irregularidade da encenação grita na estrutura não-linear da montagem, que tenta segurar a atenção do espectador na desenvoltura de seu próprio vai-e-vem. Nenhuma condenação às ambições estruturais, mas filmes dessa pretensão (pensemos em clássicos modernos do multiplot como Pulp Fiction, Medos Privados em Lugares Públicos ou mesmo Yi Yi) só sobrevivem se a estrutura partir de cenas de sólida dramaturgia interna. No fim das contas, são elas que determinam o engajamento do espectador. A fragmentação da montagem de Loveless traz toda a atenção para si e, com isso, acaba expondo a fragilidade dos pequenos nichos dramáticos encenados que compõem o filme.
Em A Casa de Sandro – filme sobre o qual já escrevi outro texto – a indefinição é de outra natureza. Pois mesmo sendo o longa de projeto mais rigoroso no CEN 2009, a sensação latente na revisão é a de que existem, ali, diversos caminhos de filmes diferentes, que muitas vezes se anulam. Pois se A Casa de Sandro é sobre um processo de aproximação com um personagem, é um tanto frustrante que ele termine exatamente quando essa aproximação é alcançada. A relação fica no extracampo; resta apenas o cortejo. Se ele é um filme sobre processos artísticos, sobrevive a imagem frágil da tela em branco oferecida ao espectador por Sandro, cobrindo de nada uma pintura já acabada. Que obra é essa? O que ela quer nos dizer? A impressão é de que as perguntas surgem menos por o filme ser um signo misterioso, e mais um objeto que não conhece a si mesmo. Pois A Casa de Sandro não é exatamente nenhum desses filmes, e parece mais uma organização linear que relata o que aconteceu durante uma filmagem. A arte é reduzida ao relato de um processo.
O caso de Praia do Futuro (2008, foto) – já pensado na Cinética em texto mais detido por Francis Vogner dos Reis – é mais particular, pois sua irregularidade é prevista no projeto. A idéia de convocar 18 diretores para fazer filmes irrestritos em torno da Praia do Futuro (não só um lugar em Fortaleza, mas também um nome, três palavras, etc) e montar esses pequenos fragmentos como uma obra inteira é, em essência, motivada pela desigualdade. Alguns desses episódios não são muito mais que exercícios de procedimentos (em especial o do descolamento entre som e imagem – muito forte nos filmes de Felipe Bragança e Pablo Assumpção, por exemplo, mas pouco expressivo em outros, como o de Wanessa Malta que abre o filme), mas os que sobrevivem mais inteiros são justamente aqueles que melhor assumem o sentimento de suspensão que necessariamente terão como partes de um corpo maior: Vídeo (2008), de Pablo Assumpção; P.F., de Fred Benevides e Fernanda Porto; Banho de Sol para Dinossauros, de Felipe Bragança (foto acima); e Já era Tempo, um filme musical, sensual, absurdo, de Armando Praça e Diogo Costa. São filmes que entendem o espaço como potência de projeção imaginária, como massa a ser moldada pelas experiências pessoais.
É nos curtas, porém, que os dois extremos identificados neste CEN aparecem com maior nitidez. Pois o nível de interesse suscitado pelos filmes está muito intimamente ligado (e, claro, isso diz muito sobre quem olha) ao quanto eles se mostram dispostos a produzir sentidos a partir das matérias que escolhem trabalhar. É natural, portanto, que os trabalhos mais anêmicos sejam justamente os que se contentam em reportar fatos, intenções e processos. É o caso mais óbvio de Tri Massa – Porto Alegre na Choque (2009), de Virgina Simone e Matheus Walter (nada além de uma reportagem cheia de tiques modernosos sobre uma exposição de artistas locais em uma galeria de São Paulo), mas também de Valparaíso (2009), de Diego Hoefel e Lorena Ortiz (filme que adere à indefinição de maneira tão irrestrita que dificulta qualquer contato mais ativo), dos experimentais (mais honestos, enquanto se assumem como experimentos, não como filmes acabados) Vintage Dance (2009), de Dellani Lima e Rodrigo Lacerda Jr., e 98001075056 (2009), de Felipe Barros (não mais do que uma boa tradução visual para um sentimento), e de registros que se escoram em matrizes e procedimentos que suscitam a pronta relação com o espectador, mas nunca constroem algo para além dessa familiaridade: A Arquitetura do Corpo (2008), de Marcos Pimentel – uma reportagem poética descritiva soterrada nas trilhas hoje absolutamente ineficazes de O Grivo, que sempre piora quando tenta articular algo para além disso – e Perto de Casa, de Sérgio Borges – tão somente um simpático registro familiar, com todas as reviravoltas de estômago que a facilidade dessa exposição trazem consigo.
O problema mais grave de filmes indefinidos (o que é diferente de “indefiníveis”) é que eles parecem ignorar que toda obra é naturalmente aberta, e será completada pelo espectador. Trocamos, assim, o velho mofo da dramaturgia esquemática pela ausência completa de dramaturgia. Assumir que esse simples alinhamento do olhar com certas tendências contemporâneas já é, por si só, um pensamento artístico é encorajar o raciocínio simplista de que qualquer coisa filmada (ou, hoje mais do que nunca, gravada) se torna automaticamente uma obra de arte. O que vemos é um retorno do cinema como ferramenta científica, com o agravante de que o discurso da ciência – venha ele pela observação física ou pelo inventário de formas e relações – agora passa a ser visto como discurso artístico. Se os filmes de Lumière eram mais do que registros de um mundo, era porque eles demonstravam uma enorme consciência na necessidade de se organizar pictoricamente o que seria filmado. O retorno à indefinição é o assassinato do olhar: se tudo pode ser obra de arte, nada é obra de arte.
Felizmente, uma parte considerável dos curtas exibidos no CEN 2009 trazia notícias bem mais animadoras. Embora a convivência com o grupo dos indefinidos possa levantar dúvidas de quais seriam os méritos para sua programação (estariam eles na programação por serem bons filmes, ou por serem bons filmes de uma determinada maneira?), é melhor deixar de lado as especulações e se deixar surpreender por uma safra notavelmente forte de realizadores fazendo filmes extremamente instigantes. Estão nessa lista os já citados filmes de Ana Bárbara Ramos e Carlosmagno Rodrigues (que, além de Analogia do Verme, tinha o belo Andrômeda, A Menina Que Fumava Sabão em competição), mas também os trabalhos igualmente impactantes de Tião (Muro, sem dúvida um dos filmes nacionais mais impressionantes e convidativos à reflexão feito nos últimos anos), Marco Dutra e Juliana Rojas (As Sombras), Guto Parente (Passos no Silêncio e Flash Happy Society), o encontro surpreendentemente fortuito entre Brakhage e Leos Carax que é Triangulum (2008), de Melissa Dullius e Gustavo Jahn, a simpática galhofa que é Bomba! (2008), de Lara Lima, Marcelo Lima e Renato Coelho; e a bonita animação O Menino Que Plantava Invernos (2008), de Victor Hugo Borges. Curiosamente, todos eles (talvez com a exceção do último) filmes lacunares, que dependem da participação ativa do espectador, mas que sabem que essa participação só acontecerá se o convite ao embarque for feito com firmeza e assertividade. Filmes que chegam para encerrar este texto pois, esses sim, não merecem ser reduzidos a sintomas de nada. A eles, fica prometido o retorno – inteiro e destacado – em textos futuros aqui na Cinética.