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The Time That Remains (2009), Elia Suleiman

Publicado originalmente na Cinética em Outubro de 2009.

O eixo da questão

Logo no princípio de The Time that Remains – após um prólogo no presente – um soldado israelense discute com um grupo de palestinos sobre qual direção ele deveria tomar para chegar a um determinado lugar. A sequência mostra um evento corriqueiro com uma frontalidade que limita ao extremo o ponto de fuga, e é montada em plano/contraplano, cortados no eixo, em absoluta simetria. Os dois procedimentos são adotados ao longo de todo o filme, e é interessante olhar para seus efeitos, que ficam logo claros nessa primeira cena. Antes de mais nada, a limitação do ponto de fuga delimita um território (questão ainda mais importante para um diretor palestino) de onde parte o olhar, que – somado à irônica artificialidade da encenação e à própria presença de Suleiman como ator e personagem – reitera um óbvio importante: tudo que é filmado está confinado aos limites dos olhos de um sujeito. Não existe, portanto, qualquer intenção de pairar acima dos conflitos que constituem a identidade do povo palestino, pois eles só são acessíveis pelo corpo-a-corpo pessoal. Todo plano terá um ponto de vista e responderá aos limites de conhecimento de quem olhar.

Essa afirmação leva ao segundo procedimento marcante em The Time that Remains: ao fazer contraplanos frontais e diretamente opostos aos planos, Elia Suleiman quebra o eixo dos atores. Na primeira sequência, esse efeito é extraordinário: quando os homens palestinos dizem que o soldado israelense deveria ir para um lado, no contraplano ele sempre parece entender que deveria ir na direção contrária. Ambos falam a mesma coisa, mas a representação do entendimento é sempre inversa. The Time that Remains é todo feito dessas pequenas inversões que, mais que um jogo de linguagem, se revelam operações políticas. Pois Suleiman compreende que, para além dos Estados, a política é uma atividade pessoal e intransferível. É natural, portanto, que o diretor perceba que a maior potencialidade de sua arte é falar sobre si mesma – algo que só encontra entrega de equivalente radicalidade nos filmes recentes de Takeshi Kitano.

Essa auto-referencialidade por vezes chega perto do excesso, mas é equilibrada pela presença encantadora de Suleiman em tela, com a dura fluidez de seu movimento, e a voz amordaçada pelo peso do tempo. O peso é uma qualidade essencial para seu humor, pois a leveza produz exatamente aquilo que o diretor descarta: a possibilidade de uma visão destacada, flutuante, absoluta. Suleiman nega o plongée em nome da frontalidade absoluta, sem tirar da câmera a sua gravidade, sem sacrificar a clareza de quem vê em nome de uma impressão de totalidade. Sua câmera está sempre na altura dos olhos, e seu humor é direto e auto-referente – mas só alcança tamanho efeito por ser também auto-irreverente. The Time that Remains transita, quase sempre equilibrado, no limite tênue onde o falar de si não se configura como um gesto insuportavelmente vaidoso. Suleiman se oferece ao próprio filme para ser negado em paradoxo, pois cada nova gag desmonta o sujeito ao fazer dele um personagem.

Mais do que metaforizar entidades de valor inventado (como são os países, as religiões, as línguas), o diretor se concentra na maneira como as vidas particulares são afetadas pela intransigência dessa política-macro, e como os conflitos acabam funcionando como combustível para si mesmo. Portanto, é necessáriopassar por o que é digno do noticiário, mas somente porque isso influencia a política que realmente lhe interessa: a convivência cotidiana. A história maiúscula toma a forma de um tanque que vigia, agressivamente, o sujeito; mas, até mesmo em suas alegorias mais ambiciosas, The Time that Remains nunca tira o foco das pessoas. A simetria das lembranças é de outra ordem: um vizinho que tenta solucionar tudo com alguns goles de aguardente; um prato de trigo para kibe que é confundido com pólvora; o silêncio com que seu pai acolhia o vizinho bêbado que periodicamente tentava se incendiar em público. Ao final, quando morre sua mãe (com toda a carga metafórica que isso pode ter), Elia Suleiman senta num banco do hospital e continua a observar o mundo em toda a sua pequenez. São essas as coisas que persistem na memória; são esses os tempos que permanecem para Elia Suleiman.

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