Publicado originalmente na Cinética em Setembro de 2009.
Da insuficiência
Escrever com algum rigor sobre As Praias de Agnès traz dificuldade semelhante à de se comentar criticamente a vida de alguém. Por vida, a propósito, é preciso não reduzir o tempo aos marcos históricos deixados por cada pessoa, ou mesmo seu posicionamento político em relação ao mundo; mas sim contemplar a duração de suas lembranças, dos momentos de inalcançável privacidade que pairam além disso, onde o juízo não encontra espaço para se instalar. Tal qual Santiago (2007), de João Moreira Salles ou os cine-diários de Jonas Mekas, As Praias de Agnès nasce de um incontrolável ímpeto de conservar, em imagens, a impalpabilidade das memórias da vida de uma pessoa – não da memória em si, como fazia Resnais, mas das memórias, plurais, particulares e intransferíveis.
E como se pode julgar memórias particulares? Podemos nos posicionar diante do desejo de extravasá-las, ou ainda da maneira que se faz isso. Mas, ao menos no caso de As Praias de Agnès, a medida seria desigual. Pois, no filme, não há procedimento a ser julgado: há as imagens, e a entrega que as torna possíveis. Como se julga um epitáfio de próprio punho? Pois As Praias de Agnès não é diferente disso. Mesmo que Agnès Varda siga o caminho de Manoel de Oliveira, e continue filmando por mais 20, 30 anos (como todos desejamos), é palpável a sensação de despedida que paira sobre o filme. Continuar filmando, aliás, é uma intenção que o filme – ao “terminar”, e depois abrir espaço para um último parêntese – oferece como possibilidade; talvez até como desejo. Caso o mundo impeça, tudo parece dizer, a despedida já foi feita.
Mas As Praias de Agnès não é um auto-inventário – como Chantal por Chantal (2001), de outra cineasta franco-belga, Chantal Akerman –, tampouco uma auto-celebração felliniana, um convite de baile para seus próprios fantasmas. Na verdade, o filmeparece francamente decidido a implodir qualquer noção de origem ou trajetória, misturando os tempos verbais em um único manancial de lembranças. Varda volta ao lar de sua infância, mas acaba mais interessada na coleção de trens do atual morador da casa. Em outro momento, ela volta às locações de La Pointe Courte (1955), mas a reconstituição tem pernas bem mais curtas do que seu interesse pelas vidas crescidas das crianças do filme. Mostra os momentos em que sua casa serviu como locação para filmes (os seus e os do marido, Jacques Demy), e, ao fim, a diretora produz uma instalação onde uma casa tem as paredes feitas de filme. Ali, dentro do cinema, ela diz se sentir em casa.
O filme se constrói nesse movimento aparentemente desregrado, que ganha uma consistência por ser povoado de criações de uma mesma artista. Mesmo quando não parece haver um padrão a reger as formas, elas se encaixam como partes das memórias. “Memórias”, sempre no plural. As Praias de Agnès desova uma série de imagens que, embora nem sempre articuladas, trazem o traço constante de uma criadora fascinante. Agnès Varda tem uma história de vida extraordinária, e a naturalidade com que ela revisita essa história – com suas figuras e feitos absolutamente notáveis – dá ao filme um sentimento ambíguo; um misto de tristeza e alegria que só pode vir com a consciência do fim. Essa consciência traz, para o filme, aquilo que o faz realmente grande: um despudor completo em se criar imagens fiéis à ambiguidade desse sentimento. Ela oferece begônias a seus amigos mortos, projeta o rosto de Demy em uma parede, substitui Chris Marker por um gato de desenho animado, fala de Jim Morrisson só para falar de Jim Morrisson; e todas essas imagens – muitas vezes gratuitas e de enorme pieguice – aparecem contaminadas por tamanha entrega que se tornam realmente tocantes. Acima de qualquer julgamento, as imagens de As Praias de Agnès passam uma sensação plena de pertencimento. Como partes de seu corpo, são, todas elas, imagens de Agnès Varda. E quando essa entrega se torna tão palpável quanto aqui, só nos cabe, também, nos entregarmos plenamente a elas.