Publicado originalmente na Cinética em Junho de 2009.
Partido em dois
Na cena mais forte de A Partida, o protagonista Daigo Kobayashi (Masahiro Motoki) observa salmões que tentam nadar contra a corrente de um rio. Ao mesmo tempo em que vemos a luta desses peixes, outros são arrastados, já mortos, pela correnteza. Num filme que gira em torno de noções como vida, morte, arte, trabalho e predestinação, a cena ganha contornos de alegoria. O simbolismo representativo é adotado sem a singularidade rebuscada de um Tsai Ming-liang, e é incorporado com naturalidade ao cotidiano – mais próximo do tratamento dado por Kiyoshi Kurosawa às medusas de seu Água Viva (2003): estar vivo é, necessariamente, nadar contra a corrente, brigar com a força das contingências, mesmo que a morte seja o inevitável destino.
É bastante animador que, até aquele momento, Yôjirô Takita nade contra sua corrente particular desviando o peso de seu tema (a rotina de um rapaz que, após a dissolução da orquestra onde tocava violoncelo, passa a trabalhar preparando cadáveres antes de serem cremados) com um humor sutil e respeitoso – como um Katsuhito Ishii light. Em vez de seguir o caminho fácil do artista frustrado – que se apresenta logo no início do filme – Takita parece, até aqui, acreditar que a arte é sim o sonho, e o sonho é o oposto da morte; mas essa arte está ligada, sobretudo, à idéia de trabalho. Embelezar os mortos é fazer pregnante o momento anterior à morte, e ao artista cabe justamente conservar, quando não ampliar, esse momento de plenitude – visão rigorosamente oposta à de, por exemplo, Stan Brakhage em The Act Of Seeing With One’s Own Eyes (1971). Ao artista – em termos platônicos, ao artífice – cabe se entregar plena e incondicionalmente à função de seu trabalho. Nas mãos certas, embelezar os mortos pode ser atividade mais nobre do que tocar violoncelo – ainda mais quando o sonho musical parece, na verdade, ser apenas tributo a um desejo que não é seu, mas de seu pai. Assim como Daigo protagoniza um ritual conservador (a própria idéia de reduzir a representação ao instante pregnante), temos esse indício de libertação pessoal de um passado atrelado à figura do pai, da infância, do passado.
No entanto, essa promessa de vida não dura, e logo vemos os recursos mais fortes da primeira metade de A Partida se voltando contra a própria narrativa. Os salmões, diz uma das personagens, nadam contra a corrente para morrer no lugar onde nasceram. Aos poucos, a comédia leve se embaraça em questões traumáticas (a memória desfocada do pai, que fugira com outra mulher quando Daigo era ainda criança) que Takita só vislumbra desatar pela aproximação com o melodrama. Mas enquanto o diretor alcançava algum frescor pelo humor, sua abordagem do melodrama é a mais convencional possível. Essas convenções, porém, nunca configuram um estilo (algo que vemos no trabalho de um Clint Eastwood, por exemplo) e sua fraqueza individual se esconde na sombra do humor leve que nos levara ao filme. Esse contraste de gêneros produz um estranho tom de deboche, onde o humor se projeta clandestinamente sobre o uso das convenções, expondo-as, mesmo que sem intenção, em sua falta de substância.
O simbolismo, que era fuga epifânica na cena dos peixes, desemboca em linhas de roteiro que fazem, do alegórico, esquemático; e do delicado, frouxo. A pedra-carta que aparece em um primeiro momento ganha uma longa explicação adiante; o pai desfocado entra em foco no final; o protagonista faz as pazes com seu violoncelo, e ganha um clipe não diegético tocando o instrumento (de criança; pequeno; patético) ao ar livre, costuradas com os fios de nobreza de sua nova profissão. E se o riso nunca ganhava o quadro na porção comédia, as lágrimas não só aparecem, como adiam cada corte até pingarem do rosto de Daigo. A Partida muda de rumo, e se deixa levar pela correnteza. Pois se antes víamos uma personagem se desligando voluntariamente de sua memória patriarcal, é exatamente a figura do pai que o filme trará de volta ao centro. Assim como Daigo escolhera o violoncelo por influência paterna, ao fim ele usará também seu novo talento para lhe prestar reverência, embelezando a lembrança que já não mais vive e que, pra ele, talvez só passe a viver naquele momento. Yôjirô Takita parece se render ao pensamento corrente de que cabe ao filme consolar suas personagens e, culpado, reparar as feridas que ele mesmo abriu. É o caminho escolhido para passar pelo espectador sempre de longe, e não provocar-lhe um arranhão sequer.