Publicado originalmente na Cinética em Outubro de 2008.
O nascimento de um universo
A cartela de texto que abre Noite e Dia – oitavo longa do sul-coreano Hong Sang-soo – vem com uma informação do passado: Sung-nam (Yeong-ho Kim) teria entrado para a lista de procurados da polícia sul-coreana após ter experimentado maconha. Seu exílio temporário em Paris, porém, é mais do que um cordial aceno às constantes (e justas) comparações do cinema de seu diretor com o de Eric Rohmer. Porque, para além de algumas problemáticas interações entre o protagonista e os habitantes locais, Hong Sang-soo filmará a França exatamente como filma sua terra natal, com situações vividas por coreanos movidos pelas mesmas inseguranças que eram o combustível em Turning Gate, Mulher na Praia (exibido no Festival do Rio do ano passado), ou qualquer outro de seus filmes. Mais do que o encerramento geográfico ou a vontade de provocar um curto-circuito na idéia de lar (como é o caso de O Último Reduto – filme de Rabah Ameur-Zaimeche também presente neste Festival), há, nesse desvio, uma declaração de princípios: Hong Sang-soo filma, sobretudo, um universo ficcional autônomo e independente de lar geográfico.
Seja em Paris ou nas inúmeras cidades coreanas por onde já filmou, suas locações existem muito mais como ambientes de trânsito para o seu universo do que como partes ativas das narrativas. Que seja, assim, aonde for; será sempre na terra de Hong Sang-soo. Essa terra é, portanto, lugar de manifestação de um raciocínio interno constante e claro, que se repete em uma série de signos: o homem artista como protagonista; o reflexo entre as duas metades de um mesmo filme; a última palavra sempre reservada às mulheres; as cenas de sexo, filmadas sempre com um distanciamento quase científico; a busca de um alívio temporário para o constrangimento nas bebedeiras e nas drogas.
Existe, porém, uma questão narrativa crucial na escolha de Paris como locação para Noite e Dia, que pouco tem a ver com o espaço, mas muito com seu produto. Em dado momento, acompanhamos Sung-nam e Hyun-ju (Seo Min-jung) em uma visita a uma galeria de arte, onde estão expostas obras do mestre do realismo francês Gustave Courbet. Em vez de passearmos pelos quadros, os olhares fixam logo sobre L’origine du monde, tela de 1866, facilmente reconhecível por sua explícita frontalidade: é uma pintura em close do sexo feminino. Entrecortando elogios e devaneios, as personagens discutem se o quadro se chamaria A Origem do Homem ou A Origem do Mundo. Saímos da galeria com eles, de volta às ruas de Paris. A tela de Courbet, signo inserido na narrativa com o mistério típico do tratamento simbólico de Hong Sang-soo, não será mencionada novamente, mas ao espectador fica a suspeita de que ali, muito provavelmente, estaria a chave para a compreensão de todo o filme. Isso não só é verdade, como é uma constante em Noite e Dia, pois é esse o trabalho em que Hong Sang-soo expõe com maior transparência o funcionamento interno de seu universo.
De L’origine du monde podemos tirar, ao menos, duas importantes conclusões. Do lado formal, a filiação do realizador sul-coreano ao desenquadramento à composição clássica proposto por Courbet. Assim como fez o pintor francês, Hong Sang-soo trabalha com enquadramentos cuidadosamente fluidos (do que o uso da lente zoom, desde Conto de Cinema, se torna o mais concreto exemplo), em uma organização de vetores que estão sempre entrando e saindo do quadro, incorporando o extracampo em limites que são continuamente reconfigurados, seja por expansão ou por contração. A onipresença da encenação em tableau muitas vezes leva a composição visual a uma prisão de imobilidade geométrica (pensemos, aqui, no cinema de um Tsai Ming-liang, por exemplo), mas Hong Sang-soo faz uso desse mesmo recurso de maneira radicalmente oposta. Há, em seus filmes, um mundo incompleto que sempre escorre pelas bordas. Existe também, em Courbet, uma aproximação temática: todo o cinema de Hong Sang-soo gira em torno da sede masculina pelo sexo feminino. A grande novidade de seu olhar, porém, estaria na reconfiguração desse desejo sexual. Se os filmes de Wong Kar-wai ou Claire Denis – dois artistas da pele – são movidos por construções pulsantes, sempre próximas à ebulição, para Hong Sang-soo o sexo é, sobretudo, fonte de constrangimento, de uma intransponível separação entre dois seres. A rigor, há sempre um macho partido tentando, com todas as forças e palavras, conquistar uma fêmea. Dali nasce, portanto, o seu universo.
Existe, porém, uma crítica (positiva ou negativa – dependendo de quem olha) pronta para todo filme de Hong Sang-soo, que consiste justamente na enumeração dos elementos que se repetem. Assim como os já citados Rohmer e Tsai Ming-liang, Hong Sang-soo povoa seu mundo de signos reiterantes que geram uma sensação aguda de pertencimento; de que suas estórias viriam de uma matéria bruta anterior – uma massa única de onde o diretor arranca pequenos pedaços e transforma em grandes filmes. Sobre isso, falamos até aqui. Mais interessante, porém, é perceber como cineastas que delimitam paredes tão claras para seus universos conseguem (nos melhores casos) transformar, em passos mínimos, esse universo-mãe a cada novo filme.
Com Noite e Dia, o diretor avança em um processo já iniciado em seu trabalho anterior. Se há, em todos os seus filmes, uma dupla figura feminina, em Mulher na Praia (2006) essas duas mulheres finalmente se encontram. A figura feminina – até então tratada como uma moldura a ser preenchida por diferentes idealizações – é, finalmente, encarada em sua concreta individualidade. Em Noite e Dia vemos é a dilatação ainda maior desse processo: em vez de repartir esse ser feminino em duas metades, ele aparece pulverizado em rostos do passado e do presente, em mulheres vivas no campo e no extracampo (a esposa de Sung-nam que, até pouco antes do final, é confinada à voz ao telefone), em um mundo por onde cruzam diversas possibilidades de origens. Não à toa, à surrada calça jeans que Sung-nam usa durante todo o filme são contrastadas as esvoaçantes saias das personagens femininas – peça de vestuário constante na filmografia de Hong Sang-soo que, projetada sobre a nudez da tela de Courbet, ganha um movimento de expressão única.
A questão geográfica servirá, também, como motivação para uma mudança bastante radical para um cinema de passos tão curtos, que é a inédita desigualdade entre as partes espelhadas que, até então, partiam sempre em metades precisas os seus filmes. Aqui, a dualidade vem expressa no próprio título: noite e dia, de fato, mas uma noite que tarda a cair, derrubando a claridade quando o relógio já passa das dez. Não há mais duas metades exatas. A estrutura do filme reagirá a esse novo poente, adiando o retorno de Sung-nam à Coréia para os vinte minutos finais de projeção. Mais do que buscar efeito na repetição das situações, Hong Sang-soo persegue, em Noite e Dia, uma operação de contraste de temperamentos: enquanto os casos parisienses de Sung-nam são fugidios em seu imediato prazer, há, em sua esposa, um pragmatismo ativo que é único em todo o filme.
Mas o mundo de Sung-nam não é exclusivamente concreto, afinal, ele é um artista que, pela pintura de nuvens ou pela busca de altitude na maconha (get high, como se diz em inglês), está sempre transitando entre um universo concreto (mundo onde não se compra camisinhas por constrangimento ou se resiste à tentação por praticidade) e outro onírico. Quando ele retorna à Coréia, um movimento de câmera sai da cama que ele dividie com a esposa para uma pintura de nuvens que faz céu à sua cama. Pelo portal das nuvens, entramos no mundo dos sonhos. Dentro desse universo que parte de imagem tão associada à transcendência, uma sequência particular chama atenção: Sung-nam possui uma nova esposa, que vai a uma casa de banhos, onde um grupo de mulheres nuas quase desaparece em meio ao vapor. Atiçado pelo estado de condensação que deu início à vida, um porco força a janela para entrar, também, naquele espaço exclusivo às mulheres. Embora atraído pela nudez das mulheres, sua entrada naquele universo é, ao fim, impraticável. Aos homens e porcos resta somente a certeza de que, mesmo diante da nascente do universo, há sempre uma barreira transparentemente intransponível. Uma janela para o outro lado (ou uma tela, em um quadro), e um vidro que o mantém preso, inalcançável, do lado de cá.
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