Publicado originalmente na Cinética em Outubro de 2008.
A ruína da intimidade
Logo nos primeiros planos de O Lar, vemos uma cena bastante atípica: um garoto, com não mais que dez anos de idade, divide um banho de banheira com sua irmã, já mulher feita. A naturalidade da exposição de uma jovem mulher em sua nudez absoluta condensa, naquela simples construção de cena, um sentimento de intimidade de força muito particular. Estamos diante de uma família diferente, de fato, só que essa diferença não corre por um caminho de excentricidades, e sim se instala em uma expressão de naturalidade completa, de integração absoluta. É assim que esse núcleo de personagens nos é apresentado e, nesse momento, já não resta dúvidas: há algo, ali, muito precioso a ser conservado. Ao se isolar no meio do nada, essa família criara um mundo autônomo (apenas o pai parece manter contato direto com o mundo “exterior”), em uma casa onde as cortinas são desnecessárias e a dieta é regida por chicletes, cigarros e pão com chocolate. E vivem, dessa maneira, em aparente felicidade.
Aos poucos, descobriremos que essa intimidade seria fruto de uma das questões mais antigas do cinema: o paraíso perdido. Se, ao menos, desde Robert Flaherty o cinema serve como palco de reconstrução para um lar perdido irrecuperável (seja ele físico – como na Terra de Ninguém de Terrence Malick – ou metafórico – como em Cidadão Kane), Ursula Meier realiza, nesse primeiro longa-metragem para cinema, uma ação desconstrutiva bastante surpreendente: partir dessa intimidade conquistada, para a exploração de suas razões e motivações. Nesse sentido, o retorno do paraíso perdido como espaço-questão de encenação proposto por Ursula Meier estaria mais próximo ao realizado por M. Night Shyamalan em A Vila (2004), do que ao de sua contemporânea Pascale Ferran, em Lady Chatterley (2006). Em vez de pensar o refúgio idílico como suspensão existencial, a realizadora o encara como sintoma de uma angústia social anterior.
Esse conforto será ameaçado pela maculação do paraíso: uma estrada construída do dia para a noite, cortando aquele infinito quintal de liberdade. Mais do que uma simples interação entre mundos, a estrada servirá como espaço-potência onde serão projetados os sonhos e inseguranças de cada personagem: motivo de excitação primeira para o pai (Olivier Gourmet); território novo a ser explorado pelo aventureiro filho mais novo (não há plano mais ilustrativo do que a pintura “indígena” feita com o piche e a tinta branca da estrada); possibilidade de partida para a filha mais velha (Adélaïde Leroux); fonte de paranóia higiênica para a filha do meio; e um medo, tão estranho como presente (no que a câmera de Agnés Godard, e a construção sonora fazem lembrar a inexplicável tensão de O Intruso, de Claire Denis), por parte da mãe (Isabelle Huppert). Se, em um primeiro momento, as crianças marcam o asfalto fresco com suas pegadas, logo o gato será preso a uma corrente, as janelas ganharão cortinas, e os sentimentos serão amplificados pelo incessante ir e vir dos automóveis.
Mais do que querer fazer um filme de personagens (algo que O Lar é, como poucos filmes contemporâneos são) ou um experimento de desconstrução social, Ursula Meier se mostra, nessa sua estréia em longa-metragem, realmente interessada naquela situação como tecido cinematográfico. Pois se os atores geram personagens de fato fascinantes, é a maneira como a realizadora mexe, constantemente, com a intimidade estrutural de seu filme que faz de O Lar uma obra realmente notável. Assim como o isolamento ameaçado serve como disparo para uma aceleração radical nos arcos dramáticos de cada personagem, é ele quem determina a transição de gêneros (da comédia colorida para o terror claustrofóbico à Possuídos, de William Friedkin), a elasticidade do registro da câmera (absolutamente solta e móvel em um primeiro momento, mas progressivamente estática quando o isolamento se intensifica), a construção climática da banda sonora (com acertadas intervenções prematuras que indicam, para o espectador, o descarrilamento que está por vir) e a reconfiguração de signos e gêneros cinematográficos (da inversão do road movie¸ ao paroxismo do kammerspiel).
Se há uma aparência de experiência laboratorial na trama de O Lar, ela é logo destruída pela fidelidade incondicional da realizadora a seus personagens e situações. Todo paraíso perdido é, ao fundo, resposta a uma condição anterior que precisa, de fato, ser confrontada. Em O Lar, Ursula Meier usa uma casa e uma estrada para levar suas personagens à vertigem da existência. E o faz com uma entrega – humana e cinematográfica – tão palpável que, aos poucos, seu pequeno e livre filme mostra ter fôlego suficiente para derrubar pares que, encastelados em conceitos e aparências, se escondem atrás de paredes de papelão.
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