Skip to content

O Corpo que Ri: Mudanças de Humor na Comédia Americana

Combinação de dois textos relacionados publicados originalmente na Cinética em Março de 2008.

A maior parte das listas retrospectivas costuma se restringir aos lançamentos cinematográficos daquele ano, seja em circuito comercial de salas, festivais ou DVD. A escolha, de fato, me parece a que melhor dá conta das questões propostas pelo cinema contemporâneo, além de o recorte temporal mais firme facilitar a ponte com os leitores (assumindo, aí, que as rotinas de críticos e leitores se encontrem na rotina de espectadores de um determinado circuito cinematográfico). Porém, com a multiplicação crescente dos meios de acesso ao cinema, essa linearidade tende a ficar cada vez mais difusa e a convivência de obras de momentos originalmente diferentes em um mesmo presente gera associações e aproximações que, por fim, acabam iluminando novas relações percebidas a partir desta convivência de acasos.

Isso explica, portanto, o nascimento das impressões deste texto pelo contraste de duas revisões: um esbarrão acidental com a metade final de O Mentiroso (1997), de Tom Shadyac, na tv por assinatura; e o primeiro contato com a versão estendida de O Virgem de 40 Anos (2005), de Judd Apatow, em DVD. Pensados como marcos de dois momentos próximos – e que se opõem em seu próprio discurso, já que em dado momento de O Virgem de 40 Anos ouvimos Seth Rogen apontar o grande equívoco do filme de Shadyac, dizendo que aprendera que não se deve mentir com o filme O Mentiroso – mas que hoje já se revelam antagônicos, percebemos uma mudança radical da relação da comédia com o corpo humano, em uma renovação de olhar que parece se consolidar com um grupo de filmes exibidos pela primeira vez no Rio em 2007: Ligeiramente Grávidos (2007), o segundo de Apatow; Superbad – É Hoje (2007), de Greg Mottola; Antes Só do que Mal Casado (2007), dos irmãos Farrelly; e as exibições no Festival do Rio de Síndromes e um Século (2006), de Apichatpong Weerasethakul, e Mulher Na Praia (2006), de Hong Sang-soo.

Os filmes de Apatow e cia. – eixo central de um grupo de artistas onde se incluem Mottola, Rogen, Evan Goldberg, Jonah Hill, Paul Rudd, etc – aparecem como um novo passo na trajetória recente da comédia que evidencia, basicamente, as mudanças da relação do cinema com o corpo como ferramenta de humor. Assim como Apatow, os Farrelly e Mottola afirmam seu cinema pela negação estética de um momento anterior (no caso, a comédia norte-americana do início da década de 1990), Apichatpong Weerasethakul e Hong Sang-soo são as pontas mais proeminentes de um novo cinema que já parece se estabelecer sobre bases diferentes de seus recentes antecessores.

O corpo dos Farrelly

A natureza da comédia é necessariamente subversiva, pois parte do sentimento de inadequação à organização social. Até mesmo os representantes politicamente mais conservadores do gênero, como o nosso Mazzaropi, agem pelo descompasso com um novo estado de (des)ordem da sociedade. No caso do cinema, esse desconforto tem tradicionalmente se manifestado de duas maneiras: o sujeito que percebe que o mundo tem um ritmo autônomo, e o humor nasce da vontade desse corpo de adequar seu tempo ao do mundo (pensemos em A General, de Buster Keaton, ou em Escola de Carteiros, de Jacques Tati); e o sujeito que, voluntariamente ou não, usa seu corpo como elemento subversivo dessa ordem, desse tempo social do mundo (Um Convidado Bem Trapalhão, filme de Blake Edwards com Peter Sellers, é um bom exemplo de uma tradição de subversão onde se encontram os irmãos Marx, Jerry Lewis e até mesmo o João de Deus, de João César Monteiro).

Se a revisão de O Mentiroso traz consigo certo incômodo, é porque a agressiva expansividade do corpo e do rosto de Carrey era empurrada para a marginalidade dentro de uma encenação bastante conservadora. A força do humor de Carrey parece extremamente deslocada, e, nesse caso específico, a facilidade com que Shadyac a exclui para uma dimensão da vida a ser corrigida – a mentira, a imoralidade – evidencia uma reação extremamente conservadora para com as estratégias de humor de seu ator principal. Apenas em Debi e Lóide (1994) encontramos uma proposta de direção que melhor abraça a elasticidade do corpo em expansão que o ator já vinha, como uma ilha, protagonizando. Os Farrelly surgem não só como diretores dispostos a abraçar uma radicalização de mise-en-scène sugerida pela presença de um ator, mas também de pensar, a partir dessa presença, o corpo como questão que determina as relações do ser no espaço e cria, com isso, novas relações com o espectador. Se em O Mentiroso o corpo em expansão é problema a ser domado, em Debi e Lóide ele já é visto como organismo a ser moldado pelo sujeito para expressar justamente a subjetividade que a sociedade insiste castrar. 

Com a plena assimilação por parte do público dessa nova estratégia de comédia, em Eu, Eu Mesmo e Irene (2000) esse corpo já se revela a prisão da dupla personalidade que se tornaria fisicamente presente com Ligado em Você – ambos filmes que partem da comédia física que, naquele momento, já se esperava da dupla de diretores, mas que aos poucos vão percebendo sua insuficiência e, especialmente em Ligado em Você (2003), se expandindo por territórios menos seguros. Com O Amor é Cego (2001) e, sobretudo, O Amor em Jogo (2005), os Farrelly invertem a lógica de seu cinema pela mudança do sujeito: em vez do corpo em expansão, temos a projeção do olhar. 

Antes Só do que Mal Casado parte de estratégia de auto-implosão semelhante à de Ligado em Você, pois toda a primeira metade do filme é construída sobre aparências: a aproximação entre Eddie (Ben Stiller) e Lila (Malin Akerman); o próprio retorno de Stiller como protagonista (algo que não acontecia, com os irmãos, desde Quem Vai Ficar com Mary); a aparente identificação do casal; os acidentes físicos (a seqüência da bicicleta por exemplo) que retomam um estilo já há muito abandonado pelos realizadores; a aparência de um romance bem sucedido; a promessa da lua de mel perfeita, dirigindo para o oceano ao som de “Rosalita”.

Assim como a fisicalidade extrema dos primeiros planos do filme de 2003 logo se mostram insuficientes, aos poucos as aparências parecem não mais dar conta desse novo universo: Lila cantava “Rosalita” porque ela canta toda e qualquer canção que o rádio lhe oferecer; a tentativa de roubo que unira o casal revela um passado que ela ainda não admitira; a pele tosta sob o sol, e a noiva ideal aos poucos se mostra uma absoluta estranha. A primeira metade do último filme dos Farrelly é uma construção sobre projeções de seu protagonista que, aos poucos, vão sendo frustradas pela realidade. Mais que isso, é exemplo de um cinema que se expõe como tese em sua primeira metade para, logo depois, poder destruí-la.

O jogo de aparência que já vinha, progressivamente, tomando conta dos filmes da dupla em O Amor é Cego e Amor em Jogo¸ se expõe abertamente em Antes Só do que Mal Casado, e o ruído causado por essas impressões só pode ser superado pela afetividade. Não à toa, é o corpo que evidenciará as mudanças sofridas por Eddie ao ver a possibilidade de um futuro feliz com Miranda (Michelle Monaghan) virar migalhas diante dos seus olhos, já que, uma vez que o homem já tenha passado pela expressão do corpo (de Debi e Lóide a Eu, Eu Mesmo e Irene) e pela projeção do olhar (de O Amor é Cego até agora), é preciso olhar para dentro de si. A queimadura de sol de Lila é outra evidência essencial, pois a partir dela todo contato entre peles se mostra ainda mais violento e doloroso, em contraponto à leveza das caminhadas e conversas que Eddie compartilhará com Miranda. O amor é tão devastador para esse novo homem que é capaz de expatriá-lo, de tirar seu projeto de vida, de fazê-lo perder o rumo, de transformar o seu corpo. Se antes tínhamos personagens que viam no corpo a possibilidade de completa manifestação, em Antes Só do que Mal Casado eles sofrem como o diabo por a conjuntura não permitir a plena expressão do que eles estão sentindo. O corpo sofre com as curvas de seu interior.

É muito expressivo que, em ano onde mudanças na comédia se consolidam, tenhamos entre os protagonistas os nomes de Peter e Bobby Farrelly. Expressivo, pois são eles os realizadores que, ao longo dos anos, melhor perceberam o esgarçamento de certas estratégias do gênero e criaram, a partir dessa percepção, novos caminhos possíveis para seus próprios filmes, sempre a partir da problematização do corpo.

Os corpos de Apatow

Sentimento é palavra-chave para este momento, e isso só é confirmado por Superbad e Ligeiramente Grávidos, ambas produções do clã Apatow. Em Superbad, a oposição de abordagens de comédias distintas vem exposta em seus personagens principais: temos nosso olhar dividido entre Evan (Michael Cera), garoto inteligente, tímido e que só acredita na aproximação física por meio do respeito, e Seth (Jonah Hill), expansivo, gráfico, espirituoso, mas incapaz de passar para uma faculdade de renome. Ambos os personagens serão colocados à prova em uma última festa da escola, na tentativa de arrumar bebidas para se aproximarem de Becca (Martha Maclsaac) e Jules (Emma Stone), respectivamente. Tanto a passagem para a faculdade quanto a possibilidade dos relacionamentos amorosos vêm para salientar uma outra perda: a da relação que, até ali, existira entre os dois protagonistas. O sentimento que permeia Superbad não é só o da descoberta (embora ele fique evidente na iminente primeira vez entre Evan e Becca, cena filmada com um domínio tão impressionante de encenação que captura o misto de medo e curiosidade do momento como o cinema talvez nunca tenha conseguido antes), mas também o de um fim que é sentido – mas este sentimento precisa ser contido, pois o mundo não o compreenderia.

Se o cinema centrado na figura de Jim Carrey parte do corpo em expansão, Apatow e seus pares parecem interessados no corpo que se retrai, se contém, e extrai dessa timidez uma nova possibilidade de humor. Depois da ereção matinal de O Virgem de 40 Anos, ouvimos Evan dizer em Superbad que “vivemos em um mundo onde precisamos esconder nossas ereções”. Se Evan é uma espécie de resposta ao comportamento agressivamente gráfico de Carl, ambos se vêem angustiados em um jogo de dissimulação que norteia a convivência. A relação dos dois está acabando, e eles só conseguem conversar abertamente sobre o que estão sentindo depois de beberem o suficiente para não se lembrarem de nada no dia seguinte. Não à toa, esse novo cinema consagra as cenas de bebedeira como um novo ritual de convivência, pois o álcool vem liberar sentimentos que eles não sabem como inserir no mundo.

Essa liberação inconseqüente dos impulsos, porém, logo se mostra insuficiente, pois toda relação é complementada pelo ponto-de-vista do outro envolvido. Se as manifestações do corpo precisam ser escondidas, é o afeto que circula, pleno, nos dois casais que se formam e na troca de olhares do “casal” que, ao fim do filme, se separa. Ao fim e ao cabo, os filmes de Apatow e cia. vêm concentrando o olhar sobre esses momentos de passagem para a vida adulta, sobre a necessidade de assumir conscientemente uma postura em relação ao mundo. Superbad e Ligeiramente Grávidos não são exceções, pois em O Virgem de 40 Anos acompanhamos personagens que tem uma forte ligação com o passado e a infância, e que precisam crescer, trocar de pele, encarar a vida adulta e seguir em frente. Personagens que precisam buscar, em seu próprio corpo, lar que prometa algum conforto.

Se em determinado momento o underdog vinha bem representado na figura de Carrey, O Virgem de 40 Anos representou uma guinada justamente por se ocupar de um humor que contradiz diretamente a cartilha de Carrey: em vez da expansão, o corpo em retração. A mudança de foco detecta uma questão maior, pois uma vez que a explosão subversiva do corpo se torna esperada, o mundo joga para o extra-campo uma outra natureza de personagens. Troca-se o descontrole esperado da década de 90 pelo estranhamento do mundo diante da tímida contenção desse novo homem. Não é questão de optar por uma comédia mais comportada, mas sim de perceber que os geeks tornaram-se os freaks (como dizia o título da série para televisão que revelou Judd Apatow), e que são eles os capazes de subverterem uma lógica hoje já acomodada, morna e ineficaz. 

A sexualidade torna-se questão essencial, pois é justamente da relação ruidosa com o corpo que Apatow extrai maior graça de seus filmes. Se o bloqueio sexual é algo a ser superado, em O Virgem de 40 Anos, a questão afetiva de personagens como Jay e David (Paul Rudd) parece patologia muito mais grave do que a abstinência sexual de Andy (Steve Carrell) – que, ao fim, consegue fazer as pazes com o corpo sem abrir mão de suas escolhas. Se Andy – na mais expressiva metáfora do filme – sabe que os bonecos guardados na caixa original têm maior valor, é para descobrir que esse valor precisa ser aproveitado de maneira construtiva. Saímos de uma sexualidade constrangedoramente gráfica, na primeira metade do filme, e caminhamos para um humor mais doce, sereno, mas igualmente pulsante na metade final. Os dogmas da infância precisam ser quebrados – com a ciência da dor do processo – mas substituí-los por dogmas da vida adulta não seria troca muito vantajosa. À medida que libertar o corpo se torna uma necessidade, é preciso pensá-lo de forma diferente. O Virgem de 40 Anos inaugura um novo terreno para a comédia, pois percebe que a timidez e a contenção seriam a grande anomalia em um mundo dominado pela carne, pela superfície. 

No segundo filme de Apatow, é Ben Stone (Seth Rogen) quem canaliza todas as suas questões: mais uma vez temos um personagem que busca nas drogas uma quebra do constrangimento da existência, e que é obcecado pela sexualidade mediada (pornografia, filmes na TV, sites), onde ele parece se sentir protegido de todas as conseqüências de um envolvimento físico/emocional real. A troca do corpo como imagem, pelo corpo como sujeito. Não à toa, em sua primeira noite com Alison (Katherine Heigl), ela engravida, e ambos se vêem conectados por esse novo corpo, essa nova relação que escapara do imediatismo para um convívio prolongado.

Se em O Virgem de 40 Anos o corpo em contenção e em expansão era dividido entre vários personagens, em Ligeiramente Grávidos acompanhamos a mudança de um para o outro em um só ser. A razão da leve correção é simples: assim como os Farrelly apostavam em invenções quando sua ruptura anterior já se tornava aceitável, o sucesso de O Virgem de 40 Anos é indicativo de uma intenção assimilada e de uma necessidade de se pensar novas questões. Não à toa, a presença de Steve Carrell, o ator principal do filme anterior, retorna a Ligeiramente Grávidos evidenciando toda a sua assimilação: ele é uma popular estrela de cinema que dá uma rápida entrevista a um programa de televisão.  

A beleza do segundo filme de Apatow se mostra justamente quando físico e abstrato começam a interagir para além de suas posições iniciais. Se, ao começo do filme, tínhamos o contraponto do casal abstrato (Alison e Ben, com seu pedido de casamento com uma aliança imaginária) em Pete (Paul Rudd) e Debbie (Leslie Mann) – irmã de Alison que não se conforma com uma caixa de anel vazia, mas também não entende o porquê de seu relacionamento estar desandando – aos poucos ambos os excessos funcionam como separação dos casais, e o equilíbrio só se dá quando eles se mostram dispostos a comprometer suas posições de conforto em nome de seus relacionamentos. A relação física que unira, mais ou menos ao acaso, Alison e Ben retorna como manifestação do afeto que por tanto tempo era exclusiva abstração.

Essa transformação fica tão evidente em uma primeira caminhada de mãos dadas, quanto nas roupas das personagens que – progressivamente – vão se aproximando em tons à medida que suas personalidades melhor se integram. Ligeiramente Grávidos é um filme sobre o constrangimento, e esse constrangimento pode ser tanto social (paternidade, casamento, amizade) quanto físico (corpo, idade, beleza). A busca de seus personagens se dá, justamente, pela maneira de melhor expressar fisicamente aquilo que eles são, e o que sentem. O problema é que o corpo nem sempre parece obedecer.

Outros corpos

O corpo, porém, é questão ampla demais para ser encerrada em um recorte tão fechado quanto o da comédia americana. Se pensarmos em realizadores como Wong Kar-wai, Sofia Coppola, Claire Denis e Tsai Ming-liang, perceberemos que o interesse pela pele – que aproxima em contato, mas, ao fim, é a barreira intransponível que separa dois seres – e pela relação física com a câmera é chave para a compreensão do que de mais interessante vem sendo realizado no cinema nas últimas décadas. Este estado de coisas à flor da pele parece conectar o desejo que sentimos em filmes tão distintos quanto Felizes Juntos (1997), Encontros e Desencontros (2003), Desejo e Obsessão (2001) e O Buraco (1998). O interesse por questões de superfície vem se tornando tão recorrente que poderia ser mais um dado em uma certa gestalt de cinema “de arte” contemporâneo, onde entrariam também a predileção por planos médios, as atuações esvaziadas, a estrutura dramática em tableaux. O ano de 2007 trouxe para o Rio dois filmes importantes que vêm subverter essa lógica: Mulher na Praia, primeira exibição em festivais brasileiros da obra de Hong Sang-soo, e Síndromes e um Século, de Apichatpong Weerasethakul (acima).

Embora Mulher na Praia seja uma continuação de um projeto de cinema que o sul coreano Hong Sang-soo tem bem definido desde seu primeiro longa (O Dia em que O Porco Caiu no Poço, de 1996), o ineditismo de sua obra no Brasil até então vem somar preciosos centavos à impressão que tento apreender neste texto. Apesar de sua estética não deixar de incluir alguns recursos comumente associados ao cinema identificado no parágrafo anterior – o uso de planos médios, por exemplo, é praticamente constante – Hong Sang-soo se mostra original justamente na relação com o corpo. Em primeiro lugar por partir do princípio de que os corpos estão em constante relação – os corpos em cena, e o filme como corpo onde convivem vários corpos (cenas, seqüências, planos, estruturas dramáticas, construções visuais, etc).

Hong Sang-soo trabalha o plano de conjunto com uma eficiência que há muito o cinema não via, buscando na construção de cena consagrada por Eric Rohmer a melhor maneira de encenar essa relação. Com Mulher na Praia, porém, o diretor aperfeiçoa uma técnica que começara a usar em Conto de Cinema (2005): o uso do zoom vem redefinir essa relação entre os corpos, retirando e incluindo personagens das cenas à medida que sua presença é sentida no núcleo dramático. Uma cena em Mulher na Praia deixa esse movimento cristalino: acompanhamos a animada conversa do casal em vias de formação, até que um zoom out reenquadra a cena, incluindo em quadro o namorado indesejado que atravanca socialmente a nova relação, reconfigurando a nossa relação com aquela situação.

Assim como Apatow e Mottola, Hong Sang-soo é mais um diretor que constrói todo um projeto de cinema em cima da noção do constrangimento, e, muito por isso, as cenas de bebedeira são tão importantes aqui quanto em Superbad ou Ligeiramente Grávidos. Mais uma vez a sexualidade é retomada como questão complicadora (as cenas de sexo em filmes como Conto de Cinema, O Dia em que o Porco Caiu no Poço e Turning Gate são, quando não totalmente desastrosas, desprovidas de qualquer erotismo clássico), e o corpo revela sua ineficiência em expressar os sentimentos dos personagens.

Síndromes e um Século parece, sim, marcar uma mudança (embora sutil) na impressionante obra de Apichatpong Weerasethakul. Em Eternamente Sua¸ o diretor partia do mesmo interesse que conecta muitos de seus contemporâneos, pois se trata, sobretudo, de um filme extremamente táctil. Desde o plano inicial – o paciente que sofre de uma espécie de psoríase – a toda a pesquisa sensória que é sua segunda parte, o primeiro filme de Apichatpong exibido por aqui é de uma superficialidade absolutamente fascinante. Já Mal dos Trópicos (2004), seu trabalho seguinte, partiria dessa mesma origem para rachar o corpo (e aí podemos pensar também no corpo do próprio filme, tão bruscamente partido em dois) em busca de uma sensorialidade espiritual e imaginativa. A superfície da primeira parte se espatifa nas profundezas sensoriais da segunda metade do filme, onde a imersão do espectador em seus próprios sentidos é mais importante do que uma atenção intelectual em relação à obra.

Depois da explosão que é Mal dos Trópicos, Síndromes e um Século vem, também pelo humor (se existe um gênero que pode abraçar o filme sem estrangular completamente sua força, esse gênero é a comédia), pensar uma nova relação com o corpo. O físico, em Síndromes e um Século, é sempre dissimulado, porque o que as personagens aparentam ser parece nunca ser condizente com o desejo delas: temos um dentista que também é cantor, um médico que tem medo de sangue, um monge que gosta de música pop e que reconhece sua santidade no fato de usar roupas açafrão, assim como uma prótese de perna se revela esconderijo para uma garrafa de bebida, um hospital vira pista de corrida para atletas e quadra de tênis para um de seus pacientes. Nesse sentido, o binômio mais claro em Síndromes e um Século vem evidenciar essa dupla-relação: a medicina, ciência da razão, é sempre aproximada do misticismo, de uma habilidade religiosa. Corta-se do busto do médico para a estátua de Buda com uma clássica estrutura de plano-contraplano, assim como uma médica decide tentar curar o paciente pelo estímulo de seus chacras.

O corpo do próprio filme é, mais uma vez, pensado por Apichatpong Weerasethakul: é forma que tem capacidade de mutar-se em aparência, em um constante devir. Por isso as duas partes do filme começam em bases tão semelhantes. São quartos de hospitais, onde médicos e pacientes conversam coisas bastante próximas (“veremos uma reencenação de tudo que se deu até agora?” pode se perguntar o espectador), mas que aos poucos vão se mostrando diferentes. São corpos parecidos, mas investidos de subjetividades absolutamente distintas. Saímos da relação sensória de Eternamente Sua e Mal dos Trópicos e passamos a uma relação retínica, onde as mudanças e correspondências se dão no plano das aparências, da geometria. Não à toa, a cena que melhor sintetiza seu filme de 2002 é reproduzida inversamente em Síndromes e um Século: em eternamente sua, o pênis em ereção se exibia em carnal frontalidade, enquanto, aqui, ele é escondido dentro calça.

Assim como em Superbad ou Ligeiramente Grávidos, saímos de um contato de peles e partimos para uma relação com o mundo mais internalizada, contida em seu movimento, mas vibrante e cheia de vida. Nesse trajeto mórfico do corpo (e a intenção desse texto era apenas perceber mudanças que vão, felizmente, seguir em fluxo de transformação), o que 2007 parece, casualmente, constatar, é que a maneira de o cinema lidar com o caráter físico do mundo se torna logo essencial, a partir do momento que uma câmera aponta para um corpo. Mas, uma vez filmado, esse corpo é também imagem, e como toda imagem, está inserida em seu tempo, em seu próprio corpus. Depois de despir o olhar de todo preconceito, Apichatpong Weerasethakul retorna ao início do olhar, na magistral seqüência da aeróbica onde um garotinho observa os movimentos dos adultos para, progressivamente, usar seu corpo para reproduzir aquilo que vê.

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *