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Black Book (Zwartboek, 2006), Paul Verhoeven

Publicado originalmente na Cinética em Janeiro de 2008.

As feições da História

O rosto humano sempre foi uma preocupação central no cinema de Paul Verhoeven. É ele que conduz o autoritarismo da beleza em Tropas Estelares (1997), que conserva o último traço de humanidade de Robocop (1987), que desenha o jogo de aparências de Instinto Selvagem (1992), ou que, em O Vingador do Futuro, adquire uma elasticidade sobre-humana, por vezes – como em um plano-síntese do filme de 1990 – separando-se do corpo, ganhando autonomia em sua capacidade destrutiva, explodindo como a cabeça de mulher/bomba que Arnold Schwarzenegger usa como disfarce para escapar da polícia. Se o cinema de Verhoeven explora constantemente a suscetibilidade do espectador em se guiar por aparências, o rosto é o tabuleiro que ele invariavelmente escolhe para organizar suas peças.

Não é de surpreender, portanto, que todas essas questões retornem à flor da película em A Espiã, seu filme de volta à Holanda após uma carreira de 20 anos de cinema em Hollywood. Construído a partir de fragmentos de idéias não usadas em Soldado de Laranja, de 1977, o roteiro de A Espiã precisou de duas décadas para ser concluído. Para retomar esse período bastante traumático da história holandesa – época em que a população se repartiu entre a resistência e a colaboração para com a ocupação nazista – Verhoeven e Gerard Soeteman, que co-assina o roteiro, escolhem como guia Rachel (Carice van Houten), cantora judia que se refugia do nazismo junto a uma família holandesa, durante o período de ocupação. Não é essa, porém, a personagem a quem primeiro somos apresentados, pois A Espiã começa em uma visita a um kibutz israelense, na década seguinte ao término da Segunda Guerra Mundial. O ponto-de-vista da cena é o da turista Ronnie (Halina Reijn), que reconhece Rachel na professora que ensina canções às crianças residentes do kibutz. “É uma amiga da época da guerra”, diz Ronnie ao marido.

A opção por nos levar a esse universo pela ótica de Ronnie é essencial, pois ela será o contracampo político da trajetória de Rachel. Após esse prólogo, embarcamos em um longuíssimo flashback que, pelas mais de duas horas seguintes, virá dar sentido àquele rápido encontro, àquele outro estado de coisas. Tendo presenciado a casa onde se escondia ser bombardeada pelo exército nazista, Rachel procura um advogado indicado por seus pais para providenciar uma fuga para a Bélgica. No momento da partida, ela descobre que seus pais haviam decidido acompanhá-la no exílio, levando as economias da família na errante travessia de barco que os conduziria ao território livre. A viagem, porém, é interrompida por uma patrulha alemã, que fuzila o barco sem critério ou cautela. Rachel é a única a sobreviver e, escondida na vegetação, memoriza os rostos dos oficiais assassinos que roubam os pertences dos fugitivos.

Nessas duas seqüências – o prólogo e o testemunho dos roubos – Paul Verhoeven já deixa claro o interesse que servirá como base para todo o filme: a História apresenta feições muito mais complexas quando seus nomes ganham rostos. Pois se em A Paixão de Joana D’Arc (1928) – filme de Carl Th. Dreyer famoso por ser quase todo composto de closes – a carnalidade agressiva da face encontra a iluminação divina pelo isolamento espacial (como defendia Bela Balazs), no filme de Verhoeven ela ilude, desvirtua, confunde. Pois todo o rocambolesco jogo de aparências que se revelará A Espiã é fruto de um amplo estudo sobre a topografia do rosto humano: pinta-se o cabelo, troca-se de identidade e de posicionamento político, mas são os rostos – justamente aquilo que insiste sobreviver às mudanças – que surpreendem, que iludem, que enganam. São eles que fazem de um alto oficial nazista um homem adorável, que elevam um traidor a líder da Resistência, que abrem caminho para que Rachel, a judia de cabelos negros que se transforma na loira Ellis, seduza o oficial Ludwig Muntze (Sebastian Koch) e se infiltre na Gestapo. São os rostos que, ao longo de todo o filme, conduzirão as viradas de roteiro, re-situando os personagens em suas buscas.

Numa história contada por rostos, a surpreendente opção pela proporção de tela 1:2.35 se revela um precioso acerto. A horizontalidade determinante do cinemascope amplia o campo de fuga dos primeiros planos, fazendo com que todo close up compartilhe a composição com o espaço em que ele se encontra, aumentando o escoamento do olhar para um mundo de possibilidades que não se encerra no ser. Se a sobrevivência das personagens em A Espiã é determinada pela sua capacidade de adaptar sua verdade para salvar sua própria pele (como nos lembra um oficial canadense, na segunda metade do filme), o espaço que se apresenta diante dos olhos é a tradução visual dessa necessidade. É preciso olhar além para sobreviver na guerra, e a escultura de ruídos da edição sonora e a extraordinária trilha de Anne Dudley só aumentam a vitalidade do fora-de-campo que o desenho dos quadros incorpora.

É no período como amante de Muntze e funcionária da polícia nazista que Rachel (ou melhor, Ellis) e Roonie, as personagens do prólogo de A Espiã, se conhecem. Mas enquanto a guerra de Rachel é um acerto de contas pessoal, Roonie deixa-se levar pelo luxo da contingência, e entrega-se a um oficial nazista como mais tarde, após o fim da ocupação, se colocará no centro da passeata de libertação, nos braços de um soldado canadense. Se lembrarmos que a infância de Verhoeven na Holanda coincide com a tomada do país, é difícil não enxergar nos cabelos ruivos e no vestido berrantemente laranja de Roonie uma personagem que metaforiza a própria situação da Holanda na guerra. Não à toa, a perseguição aos traidores que toma o imediato pós-ocupação é mostrada de forma tão sórdida quanto as práticas do regime nazista.

A tomada de posição política de Verhoeven não impede, porém, que o filme ganhe novas matizes a cada plano. Pois a opção de filmar a História pelo que existe de mais superficial e desviante em seus sujeitos é uma forte afirmação de sua complexidade de leitura, de seus tons de cinza. Os personagens confundem-se com a História, pois ela é, de fato, um elemento complicador. E se os rostos iludem, só os atos descortinam o que a afetividade e a empatia insistem esconder: após resgatar Rachel de um linchamento público, Hans Akkermans (Thom Hoffman), um ex-líder da Resistência, tentará matá-la com uma overdose de insulina ao perceber que ela tem todas as chaves que o conectam ao massacre serial de judeus em fuga, onde sua própria família havia sido dizimada. Após a dose aparentemente fatal, Rachel sai à varanda para acenar para os holandeses que, na rua, o tratam como herói.

Em filme onde toda e qualquer imagem histórica se arruína, é curioso que as duas únicas lutas que se salvem sejam as familiares. Uma vez ciente das provas que conectam Akkermans ao assassinato de sua família, Rachel procura Gerben Kuipers (Derek de Lint), o segundo líder da Resistência que levara para além da guerra a promessa de matá-la por uma suposta traição. Ao contrário de Akkermans, Kuipers se mostra confiável pela proximidade de sua perda: seu filho fora assassinado pelo exército nazista em uma operação de resgate que o próprio Akkermans havia antecipado aos alemães. É na dor da morte familiar que Rachel e Kuipers se encontram, e é por ela que matam Akkermans e recuperam o dinheiro dos judeus assassinados em fuga. Se os povos holandês e judeu traçaram caminhos tão diferentes em uma mesma guerra, é na dor da perda que as pessoas se aproximam.

A Espiã termina no kibutz da seqüência de abertura, e com isso aquela rememoração histórica se revela trajetória pessoal. O lugar que Rachel escolheu como futuro teria sido construído com o dinheiro dos judeus assassinados que ela conseguira reaver com a morte de Akkermans. Com o fim do flashback de sua família passada, vemos Rachel com a família que constrói para o futuro em momento de idílica paz, como se o kibutz fosse o paraíso perdido que a guerra não conseguiu destruir. Até que ouvimos uma sirene, a família corre para dentro de casa, e um movimento de grua revela soldados que guardam os limites daquele paraíso: estava em curso a crise de Suez. Não é à toa que Ronnie visite o kibutz, no início do filme, como turista, pois é exatamente assim que Verhoeven se coloca diante da guerra familiar constante do povo judeu. Se para os holandeses a guerra é uma marca traumática, mas passageira em sua História, para os judeus ela se torna identidade. Para além de questões políticas, sobrevive a solidariedade do plano de Rachel e Kuipers sentados à beira do rio, enfim às pazes com as mortes que o curso da vida deixará pelas margens. Pois se a História e o cinema são construídos pelo caráter ilusório dos rostos humanos, a perda, duramente concreta, é uma só.

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