Publicado originalmente na Cinética em Agosto de 2015.
Do sofrimento
Bastam os primeiros minutos de projeção – as primeiras fotografias em fade in; a primeira intervenção da narração auto-reverente; a primeira emulação do preto e branco de Sebastião Salgado pela câmera dos diretores – para motivar um muxoxo de confirmação: O Sal da Terra não é apenas um desastre, mas é o desastre que se espera que ele seja, exatamente da maneira que se pode imaginar que será antes mesmo que comece.
A sensação diz um tanto sobre o crítico e sua pré-disposição ao entrar no cinema, e outro tanto sobre o filme que, de tão absolutamente confortável em servir um modelo de idéias e associações banais, do óbvio esperado, sequer precisava ter sido feito. Passamos, portanto, da crítica persecutória, que bradava “este filme não devia ter sido feito!” (crítica que, não sem razão, assombrou o trabalho do próprio Sebastião Salgado – fotógrafo que tantas vezes se colocou diante da morte), pra crítica melancólica dos filmes que não precisavam ter sido feitos, pois já o foram, tantas vezes antes, no senso comum. Menos perigoso, talvez, e mais triste, certamente. O problema não é a emulação canônica que agride o requisito moderno de originalidade, mas o espetáculo tedioso de se assistir alguém construindo para si um pedestal de onde possa gritar, com vaidade e autoridade, aquilo que todos já sabem. (E o frustrante de filmes como O Sal da Terra é que eles condenam o crítico a este mesmo gesto patético que aqui repito: eu já sabia…). A questão deixa de ser o veredito final sobre a obra, pois os louros e os crucifixos do veredito se impõem de antemão. Resta fazer uma genealogia do desastre, na esperança de, no exame dos destroços, recuperar algo da dignidade já perdida.
Logo no princípio do filme, uma foto de Sebastião Salgado – uma das mais célebres de sua série Serra Pelada – toma a tela, enquanto Wim Wenders conta, em voz over, como conheceu o trabalho do fotógrafo. Em seguida, uma segunda imagem, cujo grande valor distintivo está em fazer Wim Wenders chorar todos os dias. O vínculo primeiro, portanto, vem pela fotografia, e o filme reafirma esse compromisso em seu mais incisivo procedimento: por um sistema de teleprompter que faz pensar na câmera atrás da tela de O Mistério de Picasso (1956), de Clouzot, Sebastião Salgado é exposto às suas próprias imagens e, impossibilitado de pintá-las e reinventá-las em tempo real, tece comentários e rememorações sobre cada uma delas, ressignificando-as. O fotógrafo olha para a fotografia e, tendo seu rosto praticamente fundido a elas (não sem um acidental efeito cômico derivado da desproporção do rosto do fotógrafo em relação às suas imagens, que surge do fundo negro como uma espécie de Deus supremo – ou assombração), conta o que se lembra, em uma espécie de faixa comentada que contrapõe a fixidez da imagem com a fluidez da memória e do discurso falado.
Manter a imagem como conector parece caminho acertado, inclusive por honrar as trajetórias que ali se encontram (além de diretor, Wenders é, ele mesmo, um fotógrafo), mas O Sal da Terra passa longe de ser um filme analítico sobre a fotografia ou a construção imagética, em sentido mais amplo. O virtuosismo técnico de Sebastião Salgado é diluído num humanismo picaresco que privilegia os encontros que originaram as fotos, muito embora sua construção visual tenda frequentemente a uma despersonificação generalizada – a começar pela própria montanha de gente enlameada que é Serra Pelada e pelos títulos amplos e poucos específicos das séries : Trabalhadores; Outras Américas; África. A narrativa imposta pela voz do fotógrafo busca suprir uma carência das próprias imagens e restituir a relação que se perde com o clique, os momentos quaisquer que são dizimados pelo momento pregnante – de certa forma, reconhecendo que, como dizia Susan Sontag, na aguda e célebre crítica feita ao trabalho de Salgado em Regarding the Pain of Others: “(…) o problema está nas próprias fotos, e não na maneira e no lugar onde são exibidas: está no seu foco sobre quem é impotente, reduzido à sua própria impotência. É significativo que os impotentes sequer tenham nomes nas legendas”. Essa espécie de ato falho (ou de mea culpa), porém, não deixa de ser revelador: toda a voz over de Sebastião Salgado vem para tentar reparar esta falta, e esse simples desejo de reparação faz com que a falta seja ainda mais gritante.
Se isso poderia indicar que o que interessa ao filme não é exatamente a fotografia, mas seu uso como canal de eco para o antes e o depois, O Sal da Terra tampouco se entrega a esse espatifamento. Não há, por parte de Wim Wenders e Juliano Ribeiro Salgado, o desejo de fazer de O Sal da Terra nem um filme de processo, nem uma espécie de ensaio analítico à Level 5 (1997), de Chris Marker. A facilidade em reconhecer, nas fotografias, recriações múltiplas da descrição de Jacques Rivette para Kapò, de Pontecorvo, no célebre artigo Da Abjeção, é eloquente: não é preciso escavar além da superfície para encontrar problemas interessantes no trabalho de Sebastião Salgado. Mas O Sal da Terra tampouco parece interessado em coletar as reverberações dessa obra, digna não só de sucesso e prestígio comerciais e artísticos, mas também de enorme controvérsia crítica. A total ausência do nome de Susan Sontag e de qualquer impressão sobre o trabalho de Salgado que não sejam do próprio fotógrafo ou de Wim Wenders mostra que o filme tem pouco ou nenhum interesse nesse corpo-a-corpo entre obra e mundo, seja como obra de arte, seja como produto cultural. Não deixa de ser irônico que, em O Sal da Terra, um fotógrafo de cunho social seja tão deliberadamente protegido do mundo e também do seu próprio processo, com sua obra colocada sob uma redoma que abole contexto, causas e consequências. O rosto cercado por um fundo negro tira o artista de qualquer relação, trazendo a suas palavras uma reverência quase religiosa. Qual a função de um fotógrafo social (mesmo que Sebastião Salgado seja, às lentes teleológicas do filme, um fotógrafo social “em recuperação”) se não lidar com o mundo?
Descartadas as fotos e a relação que elas propõem, resta o outro lado, o contracampo inevitável das janelas espelhadas que as fotografias de Sebastião Salgado nunca mostram: o fotógrafo. Neste quesito, porém, é preciso retornar a uma constrição de projeto que se impõe antes mesmo de o filme começar: Wim Wenders dirige um documentário sobre Sebastião Salgado ao lado do filho do fotógrafo. Esse dado não necessariamente sacramenta uma tragédia anunciada, mas é certamente o vislumbre de uma bifurcação: de um lado, a expectativa de um acesso sem paralelos, pela possibilidade (problemática, sempre, mas por vezes da ordem dos bons problemas) de se colocar uma câmera no centro nervoso da intimidade familiar e criativa; do outro, o discurso oficialesco das biografias e memoirs laudatórias que curvam o documentário à lógica à publicidade e dos press-releases.
Após alguns breves momentos dedicados ao processo de Genesis capturados pela câmera do filho (e que rendem um dos poucos belos planos do filme: uma coreografia de leões marinhos em água, em contraste com um animal morto na margem, que faz lembrar o fascínio com o movimento que, de alguma maneira, salvava Pina de seu próprio oportunismo), O Sal da Terra toma sem pestanejar seu caminho, e rapidamente fecha todas as janelas que pudessem mostrar qualquer intimidade que não servisse para reforçar a teleologia invertida das más biografias – se o homem “morreu” santo, logo é preciso buscar, na vida, dados que comprovem que viveu como tal. Tudo que poderia conduzir a tensões capazes de desviar o filme de seus trilhos de redenção – inclusive as latentes tensões entre pai e filho – é reprimido em nome de uma narrativa organizada e perversamente finalista, que não deixa margens para erros ou problemas (do filme e do personagem) que não sejam devidamente sublimados no renascimento (genesis) final.
O Sal da Terra não é tanto um filme sobre o trabalho de Sebastião Salgado, mas um filme sobre Sebastião Salgado. É sua narrativa pessoal – sua trajetória de herói – que é fim e princípio aqui, e seu trabalho é apenas o veículo que permitiu que essa experiência fosse vivida e, posteriormente, transformada em narrativa. Se a narração em voz over tenta dar os nomes (ou melhor, as histórias) que as fotografias não suportavam, o filme se voluntaria em, novamente, empurrar esses anônimos para a vala comum da História: aqui, eles servem apenas como incorporações de sentimentos maiúsculos – a Miséria; a Fome; o Mal; a Guerra – com os quais o Herói se confronta, e cujas cicatrizes são a matéria-prima de seu enriquecimento espiritual. Com esse simples deslocamento, os protagonistas das fotos são transformados nos antagonistas do filme, jogando luz ainda mais incômoda sobre uma hipótese permanente: seria o virtuosismo de Salgado o único protagonista de seu próprio trabalho?
“Mas o espetacular é parte integrante das narrativas religiosas pelas quais o sofrimento, ao longo da maior parte da história Ocidental, é compreendido”, escreveu Susan Sontag, no mesmo Regarding the Pain of Others. O sofrimento que interessa ao filme, é o do próprio Sebastião Salgado, pois este é o único sofrimento perfeitamente sublimável no renascimento final, como o epílogo sobre o Instituto Terra metaforiza: apesar da devastação, é sempre possível tomar a pena e escrever sua redenção de próprio punho. De trás pra frente, conta-se uma história perfeita e sem crises – do começo supostamente humilde ao exílio conveniente de um doutorado em Economia no exterior; dos ideais de esquerda à integridade incontornável de quem se permite jogar tudo às favas e começar de novo; o primeiro amor que traz, convenientemente, a primeira câmera e a primeira fotografia; o pai ausente pelos imperativos de um trabalho nobre que termina viajando ao lado do filho, em aventuras compartilhadas em filmes e fotos, restaurando uma familiaridade entre Sebastião filho e pai, via Terra – de moral clara e pura, do coração bom maculado pela sujeira do mundo que, ainda assim, se oferece (e melhor ainda que quase por acaso) ao sacrifício de limpá-lo.
Em um dos relatos sobre suas viagens pela América Latina, Sebastião Salgado diz ter sido confundido com Jesus Cristo por um missionário local. É um momento de tamanha transparência em sua falta de pudor que chega a ser desconcertante, não só por fundamentar a auto-reverência delirante do discurso de Sebastião Salgado, mas por expor, de maneira absolutamente transparente, a estrutura narrativa que os diretores usam para enquadrar sua vida. A lógica sebastianista impera, aliada à sabedoria das coincidências (calha do fotógrafo se chamar Sebastião, numa dessas manobras de roteiro que a vida larga mão, questionando sua própria verossimilhança) e à culpa cristã do documentário ressentido por se ver diante de uma vida que nem sempre cabe em uma estrutura de três atos. Com essa sequência de violações, de redenções por reduções, resta assumir a insuficiência de qualquer genealogia neste jogo de cartas marcadas e a impotência do crítico quando encontra filmes que não precisam sequer ser vistos: a dignidade, por princípio, passou longe daqui.