Publicado originalmente na Cinética em Junho de 2010.
O mistério transparente
À época de seu lançamento, Crônica da Inocência foi muitas vezes subestimado como apenas mais um filme a reafirmar a tendência do plot twist, em uma leva de finais surpresa que havia se tornado popular com o enorme sucesso de O Sexto Sentido (1999), de M. Night Shyamalan, no ano anterior. O julgamento apressado não só não faz jus ao filme, mas também surge de um erro grosseiro de avaliação. Afinal, o que é realmente explicado ao final de Crônica da Inocência? O que podemos apreender de fato dessa suposta reviravolta que, segundo esta leitura, levaria a uma conclusão definitiva? É possível, ao final, dizer alguma coisa de absoluto sobre as personagens e os dramas do filme? Há resolução? O filme é mais inteligente, e parece empenhado em frustrar sistematicamente as expectativas do espectador e das personagens que circulam o protagonista. A começar pelo título: se, à primeira vista, ele parece encapsular uma pequena narrativa sobre a infância, logo perceberemos que, se há um inocente (com o duplo sentido que a palavra carrega) no filme, certamente não é o pequeno Camille (Nils Hugon). Ao contrário: ele é o autor, o sujeito ético que desestabiliza a ordem vigente em nome de uma intuição, de uma voz que só ele é capaz de ouvir. Ele é um cineasta que propõe uma intervenção direta no mundo, e que tem plena consciência das consequências deste ato. Um artista, enfim.
Crônica da Inocência parece trabalhar no binômio kieslowskiano da personagem dividida entre uma vivência estável e as orientações de uma voz que a interpela (normalmente um impulso artístico), e a conduz irresistivelmente para uma vivência inventada que parece não ser conformável à ordem vigente. Em um texto sobre Kieslowski, Slavoj Žižek aproxima esse “ouvir vozes” à paranoia pura e simples, mas estabelece, entre as duas formas de interpelação, uma diferença essencial: “o sujeito ‘normalmente’ interpelado sabe que a voz que se dirige a ele ‘não existe realmente’, que vem de dentro dele, que é uma ficção, enquanto o paranoico acredita que a voz vem de fato do exterior”. Tanto Camille quanto Isabella (Jeanne Balibar) sabem de onde parte este jogo de encenação, e o praticam não por loucura, mas por acreditarem em seu potencial balsâmico, em sua faculdade operativa (lembremos aqui que Camille manifesta sua vontade de voltar para a casa justamente quando seu pai some de cena, após reações repressivas por demais gratuitas durante um almoço de aniversário e comentários desdenhosos sobre a produção artística do garoto).
É aí que Crônica da Inocência se revela um filme bastante diferente daquele que, em seu lançamento, por vezes se acreditou que ele fosse. A sinuosidade do roteiro do filme se contrapõe à lisura dos travellings e panorâmicas conectivos (ou até associativos) de Raoul Ruiz que, antes de estabelecer as personagens de “exceção”, determina a casa como um organismo de funcionamento comunitário; uma encenação que tem protagonistas, coadjuvantes e até mesmo extracampo bem definidos (o pai). Em certa medida, todas as personagens colaboram com a criação daquela encenação, e todas têm vidas em tela suficientemente lacunares para suspeitarmos de suas motivações e desejos – e é interessante como Camille passa a chamar sua mãe pelo nome, consciente do momento exato em que ela deixa de ser pessoa e se torna personagem. Pois ao contrário da psicanálise, a arte não é produtora de resoluções, mas sim de enigmas. E o enigma só pode ser completo se suas armações são reveladas; se, ao contrário dos truques, ele realmente se dá diante dos nossos olhos. É preciso que Alexandre realmente exista, que Camille registre o dispositivo que inventara para sua obra de vida, que Isabella aceite seu papel com total consciência de suas implicações éticas, e que Ariane (Isabelle Huppert), como espectadora ideal, também veja o nascimento daquele filme, olhando as primeiras fitas de Camille. E, ainda assim, pouco sabemos das motivações do artista: desconhecemos a raiz de seu desejo de trocar de família, de mudar de nome, de trazer um morto de volta à vida. Só assim, diante da aparente inexistência de mistério, pode haver um mistério de fato.