Publicado originalmente na Cinética em Maio de 2010.
Acordes dissonantes
Não seria exagero dizer que, em sua carreira como diretor, Takeshi Kitano possa ser considerado um artesão da demência. Em toda a esquizofrenia de seus filmes – esquizofrenia salientada pela sua muito bem sucedida carreira paralela como comediante, ator e apresentador de televisão, além de outras atividades artísticas – é justamente esse estado letárgico e um tanto imbecilizado, das personagens e dos próprios filmes, que parece preponderante. Pois, muito embora Kitano seja comumente referido como um cineasta de gênero (o que é apenas meia verdade), sua carreira se dá de maneira muito mais fluida do que seu legado. Seus filmes não só passeiam por diversos gêneros – o drama em Dolls (2002); a comédia pastelão em Getting Any? (1995); o wuxia em Zatoichi (2003); os filmes de yakuza em Brother (2000); a paródia irônica em Glória ao Cineasta! (2007); o romance adolescente em A Scene at the Sea (1991) – como muitas vezes encontram maior originalidade na combinação improvável desses mesmos gêneros: o cruzamento de comédia com filme de gângster em Kids Return (1996) e Boiling Point (1990); o drama policial em Hana-bi (1997); a comédia dramática em Aquiles e a Tartaruga (2008); etc. Em toda essa diversidade, impera o olhar para esse sentimento de mundo, essa vivência torpe e inconsequente que, seja como processo de cura ou como doença, é sempre parte da trajetória das personagens.
Sonatine descreve este arco dramático com admirável clareza: um grupo de gângsters precisa fugir para o litoral e esperar por um futuro que, no presente, não lhes pertence. Com isso, temos uma espécie de O Senhor das Moscas às avessas, onde vai-se da barbárie para o idílio apenas para perceber que a barbárie será também levada para o paraíso – idéia perfeitamente resumida em um tiroteio de fogos de artifício. A casa de praia não representa um corte, ou um retorno, mas apenas um breve estado de suspensão que conserva todas as regras e hierarquias da vivência anterior das personagens. O que muda, porém, é justamente o comportamento daqueles homens: aos poucos, o esvaziamento predominante nos trabalhadores do crime vai cedendo espaço a uma atitude diante do mundo que, senão de todo positiva, parece mais receptiva à inevitabilidade dos acontecimentos. Ali, esperando a morte, as personagens parecem vivas.
Takeshi Kitano, porém, não demonstra interesse em qualquer possibilidade de diagnóstico ou regeneração. Ao contrário, Sonatine parece sobretudo dedicado à produção constante de ambiguidades dentro e entre os quadros. Pois, a despeito de seu fatalismo absoluto e da crueldade frontal e explícita de sua encenação, prevalece em Sonatine uma placidez flutuante, com seus assassinatos ensolarados que se misturam às brincadeiras na areia, com a trilha minimalista de Joe Hisaishi, e, sobretudo, com um prazer de manipulação imagética que faz com que todo tiroteio pareça de fogos de artifício. Se há uma violência real em Sonatine, ela não está nas ações encenadas, mas principalmente na maneira como essas ações se combinam com o rigor visual ímpar e quase científico dos enquadramentos de Kitano, e com uma constante modulação entre planos dissonantes (cortes do claro pro escuro; da fixidez para o movimento; de um rosto para outro) e tons de encenação. Se, como em vários outros de seus filmes, as personagens estão condenadas à morte em causa-e-efeito, a arte de Kitano não tenta driblar o destino, mas sim desestabilizar um pouco a leitura dessas causas e efeitos, fazendo o que é hediondo parecer sereno, e o que é morto parecer vivo. Há uma destruição em curso, sem dúvidas; mas é uma destruição que não se encerra na tela, e que vem da tela para a platéia – como os tiros que são disparados frontalmente contra a câmera, em nossa direção.