Publicado originalmente na Cinética em Fevereiro de 2010.
Passado imperdoável
Ao falar de Vozes Distantes, longa de estréia de Terence Davies, é inevitável mencionar os nomes de Alain Resnais e Federico Fellini. Resnais, pela elegância dos travellings memorialistas; o cuidado na construção do décor; o rigoroso planejamento prévio de cada pequeno elemento em quadro; a câmera que expressa, em sua movimentação e posicionamento, o mergulho no passado. Fellini, pela grandiloquência operática da vida particular; a narrativa como mosaico de fragmentos soltos que se fecham em pequenos planos-sequências; o desenho sinfônico de vozes e gestos que encontra personalidade alguns tons acima do naturalismo estrito; o espaço transformado em palco para um verdadeiro balé de mortos. Em ambos os casos, a proximidade é pertinente temática e estilisticamente. São todos cineastas interessados na memória enquanto fonte artística, muitas vezes se aproximando da autobiografia mais direta (mais em Fellini, menos em Resnais), e que usam o cinema como espaço de estilização irrestrita, onde a encenação do vivido vem sempre estilhaçada pelo prisma do olhar individual.
Mas há um terceiro cineasta que vem à mente quando vemos os filmes de Terence Davies, e que talvez seja a influência que gere maior espanto, justamente por ser uma aparente contradição formal ao sistema por ele criado: Yasujiro Ozu. Contradição uma vez que as qualidades normalmente associadas aos dois diretores são não raro opostas: Davies e a empostação sinfônica, o exorcismo dos traumas particulares, os travellings que entortam o tempo e o espaço, a luz marcadamente recortada; Ozu e sua metódica economia, produzindo um universo ficcional que parece autônomo, completamente apartado de sua trajetória pessoal, filmado com câmera quase sempre fixa, em composições que acreditam demais no extracampo e na passagem do tempo para permitirem qualquer deformação diegética. Dois cineastas que vêm de cantos opostos, mas que se encontram em uma velha predileção: observar retratos de família.
Como Ozu, Terence Davies parece se inspirar na composição dos retratos familiares para desenhar os seus quadros. Surge daí a predominância de enquadramentos frontais, com os personagens encarando a câmera, como se um velho retrato fosse tirado da parede e colocado em movimento, incluindo seu passado e seu porvir imediato. O cinema vem como uma espécie de choque elétrico, reanimando os mortos (uma vez que Terence Davies filma sempre o passado), libertando-os da pose rígida que os condensou no tempo. Vozes Distantes – que compõe um díptico de inspiração autobiográfica com seu filme seguinte, O Fim de um Longo Dia (1992) – se interessa por esse reavivamento do passado não só por os fantasmas continuarem rondando, mas principalmente porque o passado não se dá apenas em poses.
As lembranças de Terence Davies são particulares justamente por não se deixarem confinar nos retratos. Elas estão mais vivas nas canções que já não mais se cantam, nas ondas do rádio que permanecem feito assombrações, na coleção de jargões e entonações que faz de cada fala uma pequena cápsula de uma época, nos eventos isolados que compõem mais uma sensação de vivência do que uma narrativa, nos papéis de parede empastelados, na insegurança palpável de uma limpeza de janelas. É a essas impressões que Davies deve fidelidade, e essa fidelidade precisa ser preservada em toda sua integridade, mesmo quando isso se traduz em uma literalidade incômoda (não há filme frontal que não seja incômodo), quase cruel, onde qualquer relativismo é interdito. Vozes Distantes traz os mortos de volta à vida, pois só assim é possível se eximir da obrigação social de perdoá-los.
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