Publicado originalmente na Cinética em Outubro de 2012.
Claro e escuro
Há uma famosa anedota sobre as filmagens de Rastros de Ódio (1956), de John Ford: o diretor teria dito a John Wayne que seu personagem poderia ter tido um caso com sua cunhada e que possivelmente era o pai das personagens interpretadas por Natalie Wood e Pippa Scott. Essa anedota serve apenas como fundamentação para uma tensão entre as personagens que se mantém latente em todo o filme, impressa em cada fotograma. Lynn Shelton, diretora deste A Irmã da sua Irmã, naturalmente não é John Ford, nem vive aquele mesmo contexto. Mas este seu quarto longa-metragem se equilibra em tensão semelhante: a de que alguns dos personagens em cena compartilham um segredo a ser guardado dos outros. É esse o grande conflito do filme e Lynn Shelton buscará sempre outras maneiras possíveis de renová-lo, cena após cena.
A estrutura do filme é como um triângulo giratório, variando apenas o vértice que permanecerá na escuridão de situação em situação. Em um primeiro momento, é Hannah (Rosemarie DeWitt) que não sabe do convite que sua irmã Iris (Emily Blunt) fez a Jack (Mark Duplass); em seguida, Hannah e Jack enchem a cara, terminam na cama e decidem que Iris não deve saber nada sobre o que aconteceu; na mesma noite, Iris conta a Hanna que está apaixonada por Jack, que, é claro, não faz idéia disso. A Irmã da sua Irmã se dedica inteiro a variações dessa mesma triangulação, para extrair todas as tensões cênicas que ela permite, seja uma lembrança do passado sobre depilação, um café da manhã ruim ou uma colher de manteiga no purê de batatas. Uma vez colocado o elefante na sala, basta trancar três bons atores por ali e manter a câmera atenta a cada pequena inflexão motivada por essa presença invisível, esse dado transparente que atravessa toda palavra, gesto e olhar.
Quando se fala em minimalismo no cinema contemporâneo, talvez as primeiras imagens que venham à mente nada tenham a ver com os diálogos extensos, a montagem ágil e a câmera solta de Lynn Shelton. Ainda assim, é bastante flagrante que todos os filmes da diretora se escoram em um número mínimo de elementos, compondo um pequeno fio narrativo a ser esticado até o limite. A Irmã da sua Irmã é praticamente um kammerspiel e sua economia se impõe durante toda a projeção. Passado o prólogo, todo o filme se concentrará em uma casa – muito parecida, inclusive, com a locação de My Effortless Brilliance (2008) – aqueles três atores, doze dias de filmagem e este pequeno dispositivo, esse segredo a ser guardado. Não é à toa que Jack joga o bom tom no ventilador no prólogo do filme justamente ao revelar um lado desconhecido de seu falecido irmão e exigir que, se vão brindar à sua memória, que ele seja conhecido por inteiro; A Irmã da sua Irmã é todo feito de pequenos segredos, seguidos por pequenas revelações, que levam a novos pequenos segredos. É preciso desfiar o novelo para a vida seguir em frente, mas a linha está amarrada a outra linha e, uma vez desfeito o primeiro nó, um novo aparece logo à frente.
Até que, lá pelas tantas, de tão esticado, o fio acaba arrebentando e parte do filme vai com ele. Uma vez colocadas todas as cartas na mesa, uma vez verbalizados os segredos e destruído o dispositivo, o filme foge para um longo interlúdio musical, como que ganhando tempo para pensar junto de seus personagens, olhando em volta, na esperança de que algo indique o caminho a ser seguido. A euforia do ritmo construído até ali se perde e leva também parte de seu magnetismo. Mas há algo de justo e admirável em como o filme se iguala a seus personagens até em seu momento de fraqueza e dúvida. Justo, pois uma das características mais bonitas de A Irmã da sua Irmã é a maneira como ele nega qualquer possibilidade de discurso alegórico, metafórico, metalinguístico ou o que for… seus personagens são o que lhes cabe ser, contam a história que vivem, e o filme pode se entregar abertamente ao prazer de partilhar esses momentos, de construir uma dramaturgia que é seu próprio fim… a potência de A Irmã da sua Irmã está na força simples e incontornável das histórias bem contadas.
Essa história, porém, é contada para alguém. É aqui que a estrutura triangular dá um último giro em torno do próprio corpo e, com o corte final para a tela preta no momento da última revelação – operação ao mesmo tempo previsível e a única possível para o filme –, sacramenta que o triângulo giratório na verdade tinha um quarto vértice que o tempo todo era mantido encoberto. Iris, Jack e Hannah sabem, e o conhecimento, o desvelamento dos segredos, é a chave para seguir em frente. Mas o que exatamente eles sabem? Para onde vão e como vai ser o caminho até lá? Do outro lado da tela, nos apequenamos diante desse novo segredo, esperando no escuro até que os créditos cheguem ao final e as luzes do cinema se acendam novamente.