Publicado originalmente na Cinética em Fevereiro de 2012.
A tradição moderna
Pouco antes de eu poder assistir a HU, recebemos aqui na Cinética uma carta de Pedro Urano, um dos diretores do filme, com considerações à crítica de Juliano Gomes na cobertura da Semana dos Realizadores. Esperei a chance de assistir ao filme para poder, enfim, ler o que o diretor nos escreveu. A carta será respondida por Juliano, como direito inalienável do autor, embora ela não tenha sido endereçada a ele, mas sim “aos editores” da Cinética. Mas dada a polifonia epistolar desta cobertura, é inevitável que as palavras de Pedro Urano se tornem parte da equação. Não irei ponto a ponto na carta pois a estratégia de desautorização ou desmonte à fala do outro não me parece avançar coisa alguma neste caso. A carta de Pedro Urano delimita as intenções que moveram as escolhas feitas pelo filme, o que pouco tem a ver com seu resultado ou com a justeza das intenções em si. Mas se o fim, no caso, é o cinema – e não este ou aquele filme, esta ou aquela crítica – faz-se necessário passar por algumas das questões levantadas pelo diretor, pela clareza com que elas ilustram o quanto o filme e crítico se colocam em lugares inconciliáveis.
Tomo emprestada a expressão usada por Alisson Avila em texto para o catálogo do Cine Esquema Novo 2011, que apresenta um suposto contrassenso: uma tradição moderna. A expressão é precisa, pois, quando se pensa em arte no Brasil, é difícil chegar a marcações que sejam realmente clássicas. Toda a tradição assimilada em maior escala pela arte hoje – da poesia à arquitetura, varrendo o que há de uma ponta a outra, da palavra ao concreto – é baseada na idéia de modernidade (e falarei de algumas exceções em um próximo texto), seja pela heterogeneidade (a impureza) que se torna regra pelo menos a partir de 1922, seja pelo impulso reacionário do naïf (o falseamento da pureza), outra de nossas supostas tradições, resultando no ímpeto burguês que diferencia arte de artesanato. Pedro Urano epigrafa sua resposta com uma citação de Helio Oiticica e, em dado momento, taxará a crítica de “parnasiana”, raro estilo de envergadura clássica da poesia brasileira que a nossa tradição modernista fez o possível para transformar em xingamento. Embora a Cinética, a meu ver, nada tenha de parnasiana, a clareza de posições é gritante. Mas o que exatamente ela grita?
HU, de Pedro Urano e Joana Traub Cseko, não só se assume produto desse pensamento moderno – misturando diversos caminhos possíveis de biografia de um prédio – mas que, mais complexo, vai falar também sobre um projeto modern(ista)o: o Hospital Universitário da Universidade Federal do Rio de Janeiro, localizado na Ilha do Fundão. Uma biografia, porém, é algo que se faz quando há uma vida para se contar. Em HU, o desejo de biografar um projeto natimorto (a tal “perna seca” do hospital – metade do prédio que nunca foi terminada ou colocada em funcionamento) transforma, inevitavelmente, essa biografia em autópsia: diante da impossibilidade da vida, resta esquartejar o morto em planos-detalhe para ver se, daqueles restos, descobre-se a causa mortis. Surge, portanto, o desejo de chegar ao todo a partir das partes, de averiguar as entranhas do prédio (e os diretores farão paralelismos como este sem qualquer pudor, cortando de uma endoscopia para a câmera que investiga também o interior da construção, ou de uma mancha na pele para uma infiltração na parede – e o problema, neste caso, não é exatamente o que se tira dessas associações, mas a pobreza das associações feitas) para, quem sabe, apontar onde tudo poderia ter dado errado. HU é um filme de legista.
Auto-psia: o ato de ver com os próprios olhos. No caso, os olhos do morto. Como é possível fazer uma crítica pelos olhos da própria vítima, ou tanto uma auto-crítica de qualquer morto que não seja machadiano? Se há uma crítica possível, é a do espírito que sai do corpo e olha para ele, casca oca, em relação com o espaço com o qual ele quis se relacionar – um filme, portanto, de plano geral, com todo o sentido metafórico que o termo também clama para si, assumindo que o hospital não é todo, mas parte de um projeto zumbificado, do qual ainda temos Brasília, a Cidade da Música e toda um maneira de olhar para a arte e para o mundo da qual o filme é reflexo. HU segue a cartilha do projeto amaldiçoado – a absoluta aderência entre forma e função; o uso da estrutura como expressão em si; a abundância de linhas geométricas que se completam em uma paisagem em trama – e busca, em sua impureza, algo que Pedro Urano chama em sua carta de “abordagem experimental”. O problema é que esse suposto experimentalismo já não experimenta coisa alguma: a arquitetura moderna é filmada com as mesmas prerrogativas (a perspectiva; a geometria; a ampliação do ponto de fuga – todos eles pressupostos pictóricos hegemônicos desde o Renascimento) que determinam a “boa qualidade” das imagens do telejornalismo, e à montagem impera uma dialética, trabalhada tanto no som quanto nas duas metades da tela dividida, onde a única síntese possível é igual às suas partes – ou seja, uma dialética que impossibilita qualquer dialética. Esse engessamento, plenamente justificado conceitualmente, impede que se encontre imagens que transmitam a impressão do que o filme se esforça em dizer: as personagens falam na monumentalidade labiríntica do espaço, mas a decupagem imposta a ele não permite que seja experimentado dentro do tempo e do espaço não confinado ao plano – logo, dentro de sua monumentalidade.
Mas se há um desejo crítico em HU – ou político, como diz Pedro Urano em sua carta – como fazer uma autópsia após um massacre generalizado? O que o particular, o específico, pode realmente dizer sobre o todo, sobre todos os cadáveres que o rodeiam, cada um com sua história, mas todos vítimas da mesma História? HU é um filme de legista onde um legista já não tem qualquer serventia. Temos aí um outro traço moderno: discorrer sobre a impossibilidade do diagnóstico, sobre a impotência do próprio método escolhido, como se fosse impossível se fazer afirmações ou proposições em uma época em que tudo que é concreto está condenado a se transformar em fumaça. O problema, o filme parece dizer, não seria da má escolha do método, mas sim da ineficiência de qualquer método, pois nos dias de hoje toda história está fadada a terminar inconclusa. Crônica de seu próprio fracasso, testemunho belo da ruína em tela panorâmica, metáfora decaída de um país que já não acredita em metáforas e onde Descartes foi condenado a não fazer sentido (não faz?) – se chegamos aqui a pontos semelhantes aos levantados a respeito de Balança mas Não Cai, na segunda carta deste breve calhamaço, o andar em círculos se fecha: HU, o prédio, é vítima de seu tempo; mas HU, o filme, não tem destino muito diferente.
Falemos, portanto, do voluntarismo. Se há uma diferença entre HU e HU, é que o projeto do Hospital Universitário – e da idéia de Brasil que ele representa – era ainda uma proposição. Um equívoco, acredito, mas uma proposição. No debate sobre o filme, no dia seguinte, ficou bastante claro que tudo o que aponto aqui como problema era, de fato, intenção dos diretores. Em uma época onde todo filme pode ser (e é) justificado racionalmente, a crítica se liberta da pecha de “mancos que querem nos ensinar a correr” (frase de Bergman lembrada pelo cineasta Gustavo Beck a respeito das duas mesas do Panorama Crítico da Crítica feito este ano em Tiradentes) para se ocupar de algo realmente produtivo: corremos de onde para onde? E, a propósito, por que corremos?
“O que a arte oferece aos homens? O prazer. É à organização deste prazer que o artista deveria se consagrar”. A fala, de Eric Rohmer, pode ser reduzida a uma defesa do entretenimento por qualquer pessoa que nunca viu seus filmes; ao contrário, ela busca condensar, sob a égide do prazer, os estímulos (agradáveis ou não – no cinema, ser violentado é ainda um raro prazer) que uma obra de arte precisa produzir para alcançar o mundo. É, por exemplo, o que salva um filme como Os Residentes, de Tiago Mata Machado, de se enforcar com a própria língua. Algo a ver com convicção. HU tem a vontade urgente e louvável de ir à raiz do problema, mas pára diante do prédio, embevecido com a beleza funérea das linhas da arquitetura modernista, da maneira como a luz entra pelas janelas, e da possibilidade de fazer um filme que deixaria Le Corbusier corado de orgulho – sem se dar conta de que lá, na raiz dessa suposta beleza e do pensamento por trás dela, é que nasce o problema. Mais uma vez, o cinema brasileiro ruma, com passos firmes e convictos, a se contentar em ser um belo fracasso, um belo problema, um belo sintoma. E por aí seguimos, com desejo de razão, mas sem desejo de pulsação, fazendo filmes onde as peças estão encaixadas em seus devidos lugares sem formarem desenho algum, como se os procedimentos equivalessem aos resultados e aos filmes coubesse mais serem justos do que serem vivos. E seguimos denunciando problemas que não estamos dispostos a realmente escarafunchar. Basta diagnosticar e se tornar parte do sintoma, pois ir além disso é mergulhar de cabeça em uma piscina rasa, e em todo mergulho de cabeça está intimamente implicada a possibilidade de morte. E morrer, no cinema, significa se obrigar a olhar de um lugar diferente.