Publicado originalmente na Cinética em Novembro de 2010.
Habitar e ser habitado
A princípio, a decisão de agrupar todos os filmes de cada sessão da competição em um mesmo texto pode parecer um tanto automática, mas neste Festival de Brasília o formato se justifica: em todas as sessões até agora foi perceptível o cuidado em reunir filmes que dialogam de maneira bem instigante, por vezes nada óbvias. No terceiro dia de competição, três propostas artísticas absolutamente distantes – os dois curtas aqui analisados, e o longa Os Residentes (2010), de Tiago Mata Machado – se reuniam em torno de uma questão bastante em voga na arte contemporânea: a ocupação dos espaços e a participação deles nas vidas de quem os habita.
Acercadacana, de Felipe Peres Calheiros é um documentário com causa: usar o cinema como ferramenta de enfrentamento político e justiça social. Maria Francisca Lima é a última resistente desde que uma empresa produtora de etanol decidiu expulsar as famílias que, por gerações, trabalhavam em suas terras. O filme reconta a história de Maria Francisca e documenta algumas ações dos seguranças da empresa para intimidar sua família. Acercadacana tem uma visível crença no poder da imagem em servir a uma causa que lhe é exterior, mas há pouco no filme que manifeste a crença na imagem por si só. Em toda sua justeza e urgência, o filme nunca se confirma como uma experiência cinematográfica realmente memorável.
Braxília, de Danyella Proença, tenta levar ao cinema parte da poesia intervencionista do poeta local Nicolas Behr. Além de depoimentos do poeta, o filme promove pequenas ações diretas na cidade inspiradas em seu trabalho, muitas vezes protagonizadas pelo próprio – um pouco como a troca do “s” por um “x”é o suficiente para reconfigurar Brasília como uma cidade imaginável. Essas pequenas esquetes brigam com a dureza do urbanismo da cidade, injetando leveza no filme como a poesia de Nicolas Behr tenta fazer em relação à própria Brasília. Com isso, Braxília se torna uma curiosa resposta à relação entre as pessoas e a cidade em Insolação, de Felipe Hirsch e Daniela Thomas, também realizado em Brasília: ambos aproveitam a geometria da arquitetura modernista na composição rigorosa dos quadros, mas enquanto Hirsch e Thomas deixavam o filme patinar em um encanto formal que acabava de esmagar suas personagens, Danyella Proença trabalha essa oposição de forma a destacar sua opressão. Mesmo sem maior brilho ou força, o filme se escora em um gesto admirável de resistência artística: diante da frieza alienante do projeto modernista, Braxília cobre cada parede de pedra branca com um pouco de poesia.