Publicado originalmente na Cinética em Setembro de 2010.
O problema moral
Há um lugar comum no pensamento cinematográfico que faz uma equiparação entre os verbos “filmar” e “atirar” em inglês (em ambos os casos, “to shoot”). Em Nível 5 (1997), Chris Marker destacava essa equivalência, não necessariamente casual, em um contexto específico que a justificava: as imagens de uma jovem japonesa capturadas momentos antes de ela se jogar no abismo revelavam uma cumplicidade entre o “atirador” e a suicida. A pessoa por trás da câmera nada havia feito para impedir o suicídio da moça. Em vez de intervir, o sujeito apontou a câmera, disparou e fez-se cúmplice daquela morte. Líbano parte da mesma equivalência para levantar a mesma questão, mas seu contexto e resultado são bastante diferentes. Acompanhamos um grupo de soldados na guerra do Líbano, em 1982, mas a câmera se limitará, quase exclusivamente, ao interior do tanque que eles ocupam. A comunicação com o mundo exterior virá pelo olhar do soldado que mira os disparos da arma do tanque: a tela ganha um alvo em seu centro, os movimentos de câmera são combinados a um tratamento sonoro que equivale aos ruídos do braço da arma, e nos são oferecidas as imagens vistas por esse mesmo soldado. Câmera e arma ganham, portanto, um mesmo e exato sentido: um olho no viewfinder, um dedo no botão e as mesmas imagens diante da lente e do canhão.
A princípio, não há nada de condenável nesse recurso – como qualquer procedimento, isento de sentido próprio que independa de uso ou contexto. Samuel Maoz poderia se aproveitar desse recurso, tirado diretamente dos videogames em primeira pessoa (Doom e descendentes), para produzir um jogo de dentro/fora de potencial interesse para um filme de guerra. Além disso, a restrição espacial poderia fazer de Líbano um autêntico kammerspiel do gênero, com seus poucos personagens, sua quase imobilidade, sua tendência para duração. Mas Líbano não se contenta em ser apenas um filme de guerra, um trabalho de gênero que tem como seu próprio fim a reinvenção de suas convenções. Líbano precisa fazer da guerra – e da premissa estética que o norteia – uma questão moral. O problema é que, de todos os gêneros cinematográficos, o de guerra talvez seja o que menos se presta a um tratamento moral. Pois a moral não é, de fato, operativa nas guerras. A guerra, ao contrário, parte do princípio inevitável da imoralidade: não há quem discorde de seus malefícios, seja pelo assassinato de civis, pela dominação de um povo por outro, pela falência de qualquer possibilidade de diálogo e diplomacia. A guerra, ao contrário, vem quando não há mais moralidade possível, quando a imoralidade parece um mal menor diante de uma certa situação. O enxerto moral que Líbano promove levanta uma falsa questão, pregando para uma oposição inexistente. Resta, somente, o grito de horror.
Samuel Maoz chega à moral justamente pela equivalência entre câmera e arma: olhamos pelo ponto-de-vista de quem atira. O duplicador do visor do canhão cria uma dinâmica de zoom que conduz nosso olhar: vemos o que o soldado vê. A imprecisão do gesto, porém, se espatifa na precisão do olhar. Pois em toda a errância da câmera-canhão de Líbano, Samuel Maoz não se furta colocar diante dela – em quadros encontrados com rapidez e precisão – toda sorte de símbolos que gritem seu caráter alegórico: uma gravura religiosa; uma mãe que tem a filha e marido assassinados; um vendedor de galinhas estraçalhado pelo “nosso” primeiro tiro; painéis de paisagens de Nova York, Paris e Londres que evocam uma realidade distante e evidenciam um sério complexo de inferioridade; e, a mais atroz das atrocidades, o olho lacrimejante de um inocente jumento em sua agonia final. O soldado vê o jumento com a barriga aberta, faz um zoom in nas narinas que ainda respiram, e passeia pelo rosto do animal até encontrar uma lagriminha derradeira. Maoz se coloca contra a eficiência demandada do soldado, mas a cumpre exemplarmente: seus alvos são sempre claros, e seus tiros sempre certeiros.
Nesse sentido, Líbano é um filme tão ruim quanto é visível sua franqueza. Samuel Maoz quer nos convencer da imoralidade da guerra e, para isso, não esconderá o traço grosseiro de suas manipulações. Quando, já no final do filme, acompanhamos a fuga final dos soldados, não teremos acesso uma vez sequer às imagens do canhão. O abandono súbito do dispositivo grifa: é hora de se emocionar com os dramas pessoais dos pobres soldados (coroado, inclusive, com o cinismo de um gag sobre uma mãe que não sabe que seu filho está morto). Para nos convencer de um ponto pacífico, o diretor nos engendra em um círculo sádico do qual deveríamos, ele parece insistir, compartilhar ao menos a culpa e a responsabilidade. Mas Maoz, tão afeito à sua brincadeira de câmera-canhão, não percebe o inevitável: nós apenas vemos as imagens. Quem escolhe o alvo e aperta o gatilho é sempre o próprio diretor.