Publicado originalmente na Cinética em Julho de 2010.
A falta que me faz
Uma mostra de curtas como a competitiva do Cine Ceará ressalta a importância cabal de uma curadoria. Pois mesmo filmes de curta-metragem não foram realizados para serem vistos juntos de outros filmes, e é inevitável que essa reunião em blocos determine de alguma maneira a leitura deles. O recorte – extremamente necessário, uma vez que as exibições serão em conjunto, e é preciso organizá-las em uma linha que perturbe o mínimo possível a fluidez individual de cada um – também ajuda a destacar características de uma parte da produção; características que, mesmo já presentes nos filmes, saltam em relevo quando reiteradas no coletivo.
No caso do 20o Cine Ceará, existia não um traço estético, mas um sentimento comum à grande maioria dos filmes em competição – algo que talvez diga tanto sobre o olhar da curadoria quanto dos próprios filmes. Quase todos os curtas valorizam alguma forma de pureza, manifestando uma nostalgia que, mesmo variando um pouco (mas bem pouco) entre objetos, olha pro passado com a proximidade carinhosa dos diminutivos. A carência – buraco por onde escorre o espírito individual ou coletivo, e que leva os seres humanos a produzirem obras de arte na tentativa de estancar o vazamento – se firma, neste conjunto de filmes, como matéria poética de diferentes saudades: saudade da cidadezinha; saudade da infância; saudade da vovó; saudade do sertão; saudade de si mesmo; e, claro, saudade dos tempos não vividos. Em época mais direta, onde os posicionamentos políticos não se diluíam na permissividade vaporosa do relativismo, a preocupação diante deste panorama se resumiria em uma associação sem margens para fugas retóricas: toda forma de nostalgia é conservadora, quando não reacionária.
Há momentos, é claro, em que toda pessoa precisa ser conservadora; mas o que é alarmante neste conjunto de filmes é justamente o quanto esse conservadorismo parece passar desapercebido aos próprios realizadores, tornando-se dado inescapável, desculpado por uma latência gosmenta de quem se perde na poesia, onde o sentimentalismo e a forma por vezes neutralizam, ou até ignoram, a matéria diante da câmera. A consequência disso é um binômio não muito frutífero, que polariza o cinema entre a neutralização e a exacerbação do sujeito que olha, como se o mundo em si, ou a simples distorção do mundo pelo olhar já fossem suficientemente artísticos.
Com isso, temos filmes que não propõem uma articulação maior do universo filmado (Ave Maria ou Mãe dos Sertanejos, de Camilo Cavalcante; Dona Militana – A Romanceira dos Oiteiros, de Hermes Leal; Fractais Sertanejos, de Heraldo Cavalcanti; Jardim Beleléu, de Ari Candido Fernandes), realizando apenas coletas de imagens que funcionam como institucionais de seus temas; outros que exacerbam o estilo para camuflar a ausência de articulações substanciais (o uso muito injustificado da câmera subjetiva em Avós, de Michael Wahrmann; o monocromatismo que pouco significa em Azul, de Eric Laurence; o frágil trabalho de gênero por Marcelo Galvão em Ouija; a recriação em animação dos versos de O Divino, De Repente, de Fábio Yamaji; a quase sempre vaidosa exposição da intimidade em Cidade Desterro, de Glaucia Soares); e ainda, filmes que realizam operações de sentidos tão claros e inevitáveis que, a despeito de algum interesse, esbarram na vulgaridade (o tratamento sonoro mimético de Supermemórias, de Danilo Carvalho; o embate entre tempos e espaços de O Som do Tempo, de Petrus Cariry; a previsibilidade simpática de Um Lugar Comum, de Jonas Brandão).
Há, porém, os que se destacam neste bolo, por vezes pelo simples contraste acentuado em relação ao resto do grupo apresentado; mas também por realmente encararem esta carência, esta saudade irremediável que prende o sujeito ao passado, como um espaço. São filmes que têm a consciência que os espaços existem para serem habitados.
O contraste da exceção – Amigos Bizarros do Ricardinho (2010), de Augusto Canini e Vento, de Marcio Salem
Amigos Bizarros de Ricardinho corre o risco grande de se dividir entre a aceitação imediata do público e a pronta rejeição de boa parte da crítica. Afinal, Augusto Canini tem a ousadia de fazer um filme conscientemente desconectado dos traços estilísticos mais claros da produção brasileira atual mais celebrada em curta-metragem, negando por completo qualquer diálogo com um regime realista (todo o resto da programação do Cine Ceará, à exceção de Vento) e/ou de inquietação de linguagem (Flash Happy Society, de Guto Parente; Confessionário, de Leonardo Sette; Fantasmas, de André Novais Oliveira; Tauri, de Márcio Miranda Perez; O Menino Japonês, de Caetano Gotardo; os filmes de Carlosmagno Rodrigues; etc).
Como bem apontou Francis Vogner em seu texto à época do Festival de Brasília, Amigos Bizarros de Ricardinho tem mesmo como referência mais próxima o cinema de Wes Anderson, seja pela frontalidade posada, pelo trabalho expressivo de décors ou pela maneira como imagens e voz over constroem um redemoinho de ritmo que nunca é auto-suficiente, funcionando sempre a favor da narrativa. É fato que cinemas como o de Wes Anderson têm assimilação muito mais forte na publicidade do que na produção de cinema brasileira, o que por si só já produz certa desconfiança. Mas Augusto Canini toma aí a inteligente precaução de localizar criticamente o filme de fato dentro de uma agência publicitária, desmontando ao final uma possível leitura maravilhada com o ambiente e tudo que ele simboliza.
Já Vento, de Marcio Salem, corre o mesmo risco do filme de Canini, mas vai de encontro a uma matriz de estilização de presença ainda mais escassa por aqui: o cinema do finlandês Aki Kaurismäki. O filme é construído como uma fábula hiper-estilizada em chroma key, primando pela repetição robótica e zumbificada da rotina de uma cidade onde não há mais vento. Em seus primeiros minutos, Vento consegue um estranhamento hipnótico, que vai se diluindo à medida em que os diálogos surgem e Salem precisa fazer – nem sempre bem – a estória andar. Com a dificuldade de encontrar um tom para as falas que seja realmente compatível com a estratégia inicial de atuação, Vento perde um pouco de sua força, embora surpreenda até o final com construções de cena rigorosas e um universo que, mesmo esburacado, parece exclusivo ao filme.
Diante de tantas obras que oficializam uma maneira única de lidar com os mesmos espaços e estados de espírito, filmes como os Amigos Bizarros de Ricardinho e Vento se tornam raras oportunidades de olhar para fora, aventando caminhos que parecem interditos ao cinema brasileiro. Com suas respectivas imperfeições, são trabalhos que oferecem a palpável sensação de sermos sugados para dentro de mundos desconhecidos e misteriosos – sensação, esta, que não deve ser descartada por compromissos de política estética que estão além, ou aquém, dos filmes.
A partir da falta – A Amiga Americana (2009), de Ivo Lopes Araújo e Ricardo Pretti; e Ensaio de Cinema (2009), de Allan Ribeiro
Enquanto Amigos Bizarros do Ricardinho e Vento se destacam muito pelo totalitarismo automático que impregna o resto do conjunto de filmes aqui apresentado, A Amiga Americana e Ensaio de Cinema (foto) se fazem destaques por razões bem diferentes. São filmes já vistos mais de uma vez, em contextos diferentes, e que se provam grandes uma vez que cada novo encontro parece abrir uma nova área de contato, revelando-se sempre múltiplos, desdobrando novas possibilidades de aproximação. Mas, sobretudo, são destaques neste Cine Ceará por trabalharem com a mesma carência que deu a tônica da competição, mas trocarem a servilidade poética pelo questionamento ativo de suas próprias fraturas.
No caso de Ensaio de Cinema, isso se dá na tensão constante entre as lembranças das cenas de filmes descritas por Gatto Larsen e a maneira como elas são repensadas (ou melhor, projetadas feito fantasmas) e incorporadas ao novo regime de imagens que é o do filme. O desejo de equivaler o amor por uma pessoa ao amor pelo cinema tem algo de belo, pois demanda de imediato uma construção: aquelas imagens, mesmo que evocadas, não estão ali, não filmaram o que vemos agora. É preciso perverter o cinema – ou esta idéia de amor pelo cinema – para preservar a matéria, a pessoa que existe diante da câmera. Mas, mais do que isso, Ensaio de Cinema é um filme sobre a ocupação de um espaço – uma casa em Santa Teresa, que ganha sentidos simbólicos no filme. Este espaço – esta cena, este presente – é, antes de tudo, um espaço habitado física e sensivelmente por suas personagens. É um espaço ocupado, clamado para si. Habitar o plano; é este o trunfo maior de Ensaio de Cinema, e que se torna gritante quando comparado às desertificações romantizadas que passavam como em linha de montagem nos outros filmes da mostra.
Já a revisão de A Amiga Americana, para além de confirmar a claríssima política de cena sobre a qual eu havia escrito brevemente para o meu blog, ressalta a ocupação de um espaço que não é exatamente físico, mas sim projetado. Pois, de fato, a Fortaleza que vemos no filme é tão apocalíptica e desértica quanto a de vários outros filmes cearenses exibidos aqui. Essa Fortaleza talvez seja inevitável. Mas o encontro entre Thais e Paris permite a ocupação de um espaço não visto, naquele que é o último e mais forte plano do filme: Thais, dois anos depois do breve encontro, sobe ao telhado de sua casa e canta sobre ir para a Califórnia. É neste momento que a narrativa ironicamente romântica sobre um encontro passado se torna de fato uma possibilidade de futuro, de intervenção, de mudança de condição para as personagens. Filme sobre o tableau cinematográfico, A Amiga Americana é o único curta em toda a mostra a assumir a única atitude justa diante do inevitável: quando o mundo não oferece qualquer possibilidade de mobilidade a ser filmada, o cinema pode sempre produzi-la. E quando os filmes ignoram esta capacidade, eles estão, na verdade, a fugir de suas responsabilidades.