Publicado originalmente na Cinética em Abril de 2010.
A natureza da cultura
Ruhr é de tamanha economia estrutural que todo texto crítico sobre o filme pode, com alguma brevidade, partir de uma descrição plano a plano – algo que Matthew Flanagan faz com admirável riqueza de detalhes em seu artigo recente para The Auteurs. Afinal, estamos diante de um longa-metragem de 120 minutos, que se divide em duas partes iguais: a primeira é composta de 6 planos fixos, de diferentes durações; a segunda é ocupada por um único e longuíssimo plano, que sustenta sua fixidez por 60 minutos. Nesta segunda metade, James Benning aproveita do vídeo (formato que ele adota pela primeira vez para um longa) aquilo que a película de 16mm não lhe oferecia: a possibilidade de parar diante de uma cena e filmá-la, sem qualquer interrupção, por uma hora completa.
A suposta monotonia (no sentido literal de “um único tom”) formal de Ruhr passa, porém, muito longe de um puro exercício contemplativo. James Benning nos oferece um mundo esburacado, estabelecendo relações formais e tópicas entre os planos que incitam a participação ativa do espectador para fazer deles mais do que meras paisagens. Não há crítica justa a Ruhr que não aceite o desafio de completar o que é mínimo, e de compartilhar sentidos que Benning possibilita em sua mínima armação de fotografia e montagem. Sem posicionamento, resta apenas o enfado da descrição. Pois Ruhr é (ou, ao menos, é também) um filme sobre a própria intervenção do homem na natureza – seja ela uma questão interna à diegese (o confronto da civilização com seu espaço, dentro de cada plano) ou externa, que se dá na intervenção do espectador no universo do filme. O processo que vemos em tela é, em grande medida, o mesmo que estabelecemos com a tela em si – com os limites do quadro, as impressões de luz, cor e sombra, a duração dos planos, etc. A paisagem natural (ou o filme, como tal) recebe a intervenção direta da cultura (ou do espectador). Temos, com isso, um novo mundo possível.
Tudo isso seria uma projeção de mão única, caso Ruhr não nos desse elementos suficientes para estabelecer os paralelos que fundamentam essa leitura. Em seu segundo plano, o filme mostra uma máquina industrial em funcionamento. Cada pequena parte tem tempo e movimento próprios, mas a harmonia desses desempenhos individuais cria uma espécie de organismo único, capaz de realizar uma função específica. Já no quarto plano, James Benning reproduz a mesmíssima composição de quadro em uma mesquita, onde os homens se ajoelham e se levantam de maneira ritmada, como as engrenagens em primeiro plano na fábrica. Há, nessa rima, não exatamente uma contraposição, mas sim uma equivalência visual que determina ambos os rituais (o industrial e o religioso) como partes de um mesmo empenho cultural.
A natureza, em Ruhr, não funciona como sinônimo do mundo intocado, mas sim da condição essencial e original das paisagens, originais em sua natureza ou construção. Isso fica claro na escolha da locação que dá título ao filme (um vale industrial determinado pelas condições naturais daquele local), e é mais explicitamente trabalhado no quinto plano do filme, onde um homem retira uma pichação de um monumento de Richard Serra, mas produz um novo desenho (um desenho sobre o desenho) com o rastro de limpeza que marca o grafite. Toda intervenção, progressista ou conservadora, deixa suas marcas, alterando o curso dos eventos – e isso vale tanto para a relação homem/mundo, quanto a espectador/filme. Essa parece ser a questão central em Ruhr, uma vez que homem e natureza não são antagonistas, mas sim partes complementares de uma mesma paisagem. O que está em jogo, em Ruhr, é exatamente esse campo de influências, onde o homem e a paisagem (natural ou não) aparecem em constante tensão magnética. Essa tensão surge tanto na relação entre planos (como no binômio fábrica/mesquita), quanto dentro do próprio plano (os carros e bicicletas que cortam o primeiro e o sexto planos; o rastro de vento deixado pelo avião que balança as árvores no terceiro plano). Como diz a citação de Deleuze e Guattari em Anti-Édipo, que aparece aqui graças a destaque recente de Cezar Migliorin, “já não há nem homem nem natureza, mas unicamente um processo que os produz um no outro”. Já não há filme ou espectador, mas filmes possíveis que se completam nos encontros individuais com cada espectador.
A divisão do filme em duas partes se faz, aí, essencial. Pois é justamente no sétimo plano que ambos, cultura e natureza, parecem inverter suas posições. Temos no quadro uma chaminé que – evocando, em um contraplano histórico possível da mesma questão, as imagens finais das torres incendiadas do World Trade Center – periodicamente joga uma enorme quantidade de fumaça no ar. A brancura da fumaça industrial, porém, evoca a pureza das nuvens. Aos poucos, a fumaça cobre toda a torre, antes de se dissipar novamente. Nesse ínterim, resta apenas a ilusão das nuvens brancas contra o céu azul, que anoitece lentamente a cada novo jorro de fumaça. Há, naquela impureza industrial, a produção de uma nova paisagem, em uma intervenção que encobre o artifício original (a torre) e produz, com isso, uma nova cena.
Nesse sentido, é ainda mais expressivo (diria até metalinguístico) que James Benning tenha usado recursos digitais para simular o anoitecer dentro da duração do plano. A mudança de luz produzida artificialmente gera novas interações de cores e formas, à medida em que a fumaça vai deixando de parecer branca e começa a se aproximar da tonalidade do próprio céu. A intervenção do artifício (o falso anoitecer; a fumaça da fábrica; a leitura feita do plano) eventualmente se iguala ao fundo, à superfície concreta (o céu; a natureza; o plano em si) sobre a qual ela se projeta. O filme enquanto tal se esconde em seus próprios artifícios, para que, com isso, possa se tornar o filme particular que cada espectador vê.
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