Publicado originalmente na Cinética em Janeiro de 2010.
Menos aqui, mais ali
Natimorto é um filme sobre maneiras arbitrárias (como o são todas) de se conferir sentido à vida. Lourenço Mutarelli, autor do texto-base e ator principal do filme, interpreta um protagonista que busca, desesperadamente, ancorar seu cotidiano em bases simbólicas que lhe preencham de alguma possibilidade mística: as histórias de infância, o tarô, as fotos dos maços de cigarro. Os sentidos estão no sujeito; falta-lhe a matéria para trabalhar. Simone Spoladore é a musa, a dona do canto inaudível, o espírito de ouvido atento que se deixa encantar pelo misticismo de Mutarelli. Temos, aí, uma equação para a realização artística: a mulher aparece como representação de uma matéria bruta, de um encantamento raro que só é percebido (no caso, ouvido) pelo artista que, por sua vez, toma para si a missão de lhe modelar e lhe emprestar sentidos que – mesmo por razões muitas vezes tão absurdas quanto o determinismo de humores das advertências dos maços de cigarro – lhe apontam uma finalidade para sua existência (lembremos que Mutarelli é um caça-talentos). Melodia e letra. Quando esquiva a essas projeções, a matéria bruta volta a ser matéria bruta – ou, em outras palavras, alvo para tomates. Cria-se, com isso, uma relação de interdependência para que possamos acessar os sentidos de uma obra (um quarto de hotel e o projeto de se trancar nele por 6 anos – a obra como espaço a abrigar e ser habitado por uma idéia) que não está em um, ou no outro, mas justamente no pacto entre essas duas entidades.
Existe, no filme, uma estrutura clássica de kammerspiel – algo que, por si só, invariavelmente esbarra na mise en scène do teatro – com o confinamento absoluto em um único cenário e os poucos personagens. Uma vez instalados dentro daquele quarto de hotel, não mais teremos acesso ao exterior – escolha que traz, ao filme, uma fidelidade canina ao ponto de vista de seu protagonista. Esse ponto de vista, porém, esbarra sempre em uma face escura, um lado da personagem que escapa à câmera e a nós: por mais grudado que estejamos nele, não somos capazes de ouvir o canto de Spoladore. Esse canto é só dele, é a beleza que só ele é capaz de identificar em um objeto, e que só ele é capaz de trazer para a superfície. É a percepção única que faz dele um artista. “Você deveria escrever um livro”, diz a personagem de Spoladore diversas vezes ao longo do filme. A matéria olha para as mãos do artista e sussurra (com constante ambiguidade sexual): molde-me.
Mas há, no filme de Paulo Machline, uma matéria a ser moldada (o texto de Mutarelli, o decór, os atores), e há a forma determinada pelos dedos do diretor. Natimorto sustenta um interesse bastante íntegro pela força dessa matéria bruta, mas parece emperrar sempre que ela deixa de ser literatura filmada (ou teatro filmado), e ambiciona realmente ser cinema. Pois Machline parece não ter consciência de que reproduzir o incômodo não é mesmo que filmar cenas que todos compreenderão como bandeiras de incômodo (Mutarelli ao chão, em posição fetal, coberto de vermes e baratas, por exemplo), mas sim fazer com que este incômodo seja transferido para o espectador na fruição dessas imagens. Daí o constrangimento pela aplicação irrestrita de jump cuts em todo o esvaziamento que décadas de maus clipes na MTV lhe agouram, e dessa sucessão de imagens esvaziadas de incômodo em vinhetas que tentam, em vão, trazer à superfície a crise do protagonista. Natimorto, portanto, traz essa sensação latente de que, mesmo quando nos interessamos por todo o universo que vemos na tela, não há muito na maneira de filmá-lo que torne esse interesse realmente cinematográfico (na verdade, há diversos momentos em que a abordagem da direção trava por completo esse contato).
Em certo momento do filme, porém, a assexualidade da personagem de Mutarelli é confrontada pela maneira como Machline filma uma sequência específica: vemos Spoladore sair do banho, no fundo do quadro, e quando Mutarelli se aproxima dela, temos um breve momento de nudez. Ele sai de perto dela, e leva consigo o foco da câmera – que apenas passara pelo corpo da atriz no momento em que sua toalha caia. Com Mutarelli em primeiro plano, falando sobre o esforço de ignorar seu instinto sexual, vemos Spoladore ao fundo, desfocada, como se essa imagem permanecesse presente nos porões da mente do protagonista. Ali, temos um raro momento de Natimorto em que as particularidades do cinema são usadas para acentuar uma sensação da cena, e não apenas descrevê-la visualmente.
Se o filme de Paulo Machline traz essa sensação de que há cinema “de menos” ali, é possível dizer exatamente o contrário do longa de estréia de Esmir Filho, Os Famosos e os Duendes da Morte. Pois Esmir parece quase que exclusivamente preocupado em filmar o cinema, mas apenas no que lhe tange enquanto um meio – algo que aparece expresso tanto no cuidado constante com a textura da imagem, quanto na inserção das plataformas sociais de internet ao longo do filme. As personagens de Os Famosos e os Duendes da Morte são como uma colcha de retalhos cerzida a partir dessa fragmentação múltipla, onde pedaços de gente se espalham pelo Flickr, o Youtube e os blogs pessoais, mas também por Gus Van Sant ou Bob Dylan.
Não é, porém, da mediação que vêm os maiores problemas de Os Famosos e os Duendes da Morte, afinal, a ela já foi combustível para inúmeros belos filmes. Os problemas realmente graves parecem condensados em um plano específico do filme: em um dos vídeos realizados pelas personagens-fantasmas lembradas pelo protagonistas, uma delas pega um plástico furta-cor e coloca sobre a câmera. O plástico gera uma deformação das cores dentro do próprio plano, mas ela não produz qualquer sentido para além da superfície cromática. A postura dessas personagens é muito como a de Esmir (que, afinal, conversa com elas pelo MSN durante o filme): seu interesse repousa apenas nessa mediação, nessa possibilidade de filtrar o mundo para torná-lo um pouquinho diferente – mas por uma diferença que é apenas cosmética, pois nunca penetra além da superfície. Até mesmo a presença ostensiva da internet naquele universo vem mergulhada nessa futilidade, pois, ao contrário de um filme como Não Me Deixe em Casa, de Daniel Aragão, ela vem como um índice de significados automáticos, e não como meio para se aproximar de um mundo que respira frente à câmera. O que se percebe, no desenrolar de Os Famosos e os Duendes da Morte, é que os meios não ajudam o filme a se aproximar do que está diante de câmera, mas porque talvez não haja, de fato, nada diante da câmera. Não há trama, não há clima, não há filme; o que existe é apenas um inventário de poses que parece ter como Deus imagético supremo os anúncios da Urban Outfitters – mas esse inventário em nada questiona ou esmiúça essas instâncias de registro, de maneira que busque compreender o que as constitui.
A inventiva fotografia de Mauro Pinheiro Jr e alguns poucos momentos fortes de dramaturgia (em especial nos primeiros vinte minutos) se perdem nessa obsessão pelo congelamento no clichê posado, onde uma cena de masturbação se torna uma grotesca fuga para o onírico, e qualquer possibilidade de fazer vida brotar é sacrificada pela vontade irreversível de se filmar um suicídio belo. Muito como o equivocado discurso em torno de Karim Ainouz como um cineasta do “carinho pelas personagens”, é de grande cegueira que este filme de Emir Filho venha envolto por um suposto interesse pelo “universo adolescente”. O interesse, aqui, é tão somente de natureza metalinguística: como filmar adolescentes nos confins do Rio Grande do Sul de forma cool?
Nesse sentido, é interessante que Os Famosos e os Duendes da Morte seja exibido, em Tiradentes, no mesmo dia de Morro do Céu, de Gustavo Spolidoro. Pois mesmo imperfeito, o filme de Spolidoro entende que se preocupar com o cinema é, antes de tudo, pensar como ele deve reagir ao que se escolheu colocar diante dele (mesmo quando, no caso de Morro do Céu, ele não saiba exatamente como reagir). Esmir Filho parece nunca olhar além dos filtros colocados em frente à lente; com isso, perde a referência que lhe é essencial. Talvez pareça contraditório que, há um ano atrás, eu escrevia um texto aqui em Tiradentes que defendia a atenção justamente a essa filtragem feita pelo cinema em Vida, de Paula Gaitán. A diferença é que, lá, esse filtro é o que permitia que acessássemos o mundo daquela personagem com a consciência de que vemos um encontro; aqui, o que temos é o autismo absoluto, a alienação de quem insiste em fazer o outro evaporar em virtualidade.