Publicado originalmente na Cinética em Fevereiro de 2009.
É bastante conhecida a máxima do escritor argentino Júlio Cortazar de que o romance pode ganhar o leitor por pontos, mas o conto precisa do nocaute. A afirmação é um tanto óbvia, seu paralelo com o cinema também, e a percepção dessa limitação – palavra usada, aqui, sem qualquer sentido pejorativo – é aguda na relação com esse amplo conjunto de filmes de curta duração. A crítica, sendo atenta ao “por em crise” que lhe é radical, surge a partir desse pressuposto, onde a contagem final – tão consciente nesse conjunto de filmes – não é a questão. Olhemos, portanto, para os golpes.
A seleção de curtas metragens feita para a 12a Mostra de Tiradentes deixou evidente, mesmo que nas entrelinhas, uma tendência que já começava a se delinear no acompanhamento (ainda que intermitente) das sessões da última Curta Cinema, no final de 2008. Como dado macro de aproximação, é comum a vários desses filmes a partida de uma característica estrutural mais cara ao universo do videoclipe. Estrutural, sim, pois ela não diz respeito a um determinado efeito estético mais comumente associado ao formato, que, na verdade, é estilo de uma corrente bem delimitada dentro da produção de clipes musicais (algo que, dentro da Mostra, encontramos nos longas de José Eduardo Belmonte). Aqui, interessa a maneira que o videoclipe consolidou de usar a imagem como um desdobramento estético a partir de um conceito que lhe é anterior – algo que parece ter atingido o nível máximo de banalização em Debajo (2007), curta chileno de Dominga Sotomayor Castillo com menção honrosa no Curta Cinema 2008, que se limita a observar uma situação decupada sempre em plongée, em uma fidelidade surda à câmera-conceito, que ignora a necessidade do plano individual em nome de algo que é exterior à diegese (seu título).
Essa tendência videoclípica, quiçá publicitária, de transformar uma idéia (ou, em linguagem mais popular e precisa, uma “sacada”) em imagem tem, em Tiradentes, o exemplo mais raso de Engano (2008), filme de Cavi Borges que simplifica ao paralelizar, sem grande efeito, a estrutura circular do clipe de Michel Gondry para “Sugar Water”, da banda Cibo Matto. Mais importante do que a relação estabelecida entre as duas personagens (e Engano se supõe um filme narrativo) é separá-las em planos-sequência paralelos, com um cruzamento de quadros ao fim (a moça termina invadindo o quadro do rapaz, e vice-versa) que só faz chamar atenção para uma suposta jóia criativa motivadora do filme. A rigor, essa mudança de eixo gera uma distorção, pois tira o foco do “durante”, e reduz a experiência a um entendimento que é ou anterior (pensemos na brincadeira brechtiana em Dogville, de Lars Von Trier) ou póstumo (Amnésia, de Christopher Nolan), fazendo do filme um recheio para essa casca conceitual.
Se a ausência total de um conceito é, por sua vez, uma inconsequência, a redução de um filme a um conceito filmado me parece – se não mais grave, por se encastelar como rigor – igualmente problemática. Problemas, porém, não são necessariamente negativos; a questão é a maneira como cada realizador lida com os seus. Confessionário (2009), de Leonardo Sette, parte, intencionalmente ou não, de matriz semelhante a outro monumental filme-conceito: Fengming: Memórias de uma Chinesa (2007), de Wang Bing. Ambos são movidos por um interesse igualmente intenso pelo ritmo de fala de uma personagem (posição política, no filme de Bing; perspectivação histórica, em Leonardo Sette) confrontado às particularidades técnicas dos meios de registro dessa fala (a interrupção para acender as luzes, em Fengming; e trocar a fita, em Confessionário). São filmes que, nessa negociação entre generosidade e limitação, apontam para uma relação com o espectador e o próprio cinema que está além da estabelecida diretamente com o filme, se inserindo em uma discussão sobre a própria natureza do registro documental. O diferencial é que, assim como em Ocidente (2008), seu filme anterior, Sette promove uma dialética entre filme e título, palavra e grafismo, imagem e texto – característica, aliás, bastante forte e peculiar de suas realizações. Em Ocidente, a banalidade cotidiana das imagens se expandia no encontro com uma palavra misteriosa, em prisma que multiplicava a força do filme em um sem-número de desvios. Já em Confessionário, o realizador incorpora a interpretação de sua própria obra, mas reduz, com isso, o potencial autônomo do filme – fascinante em seu curta anterior – a uma dialética semelhante à encontrada nas manifestações plásticas que Jacques Rancière trata, em A Política da Arte, como arte lúdica: temos dois ou mais signos (aqui, o filme e seu título) que produzem uma série de sentidos a partir do vai-e-vem retroalimentativo dessa ordem de leituras e seus limites semânticos. Citando Rancière: “O dispositivo artístico vive, assim, da indecidibilidade de seu mecanismo e de seu efeito”.
Por caminhos variantes, outros curtas esbarram em paredes semelhantes. Isso se dá tanto em graus mais brandos – como o split screen nos créditos finais que revela a técnica empregada em Dossiê Rê Bordosa (2008), de César Cabral; ou a solidificação da imagem cinematográfica em El Pintor Tira el Cine a la Basura (2008), de Cao Guimarães – quanto mais dominantes. É esse o caso de Dreznica (2008), filme de Anna Azevedo que contrapõe imagens de super 8 não exatamente fortes, mas com toda sua carga de significado agregado (aquela poeira granulada e dessaturada das imagens memoriais), a depoimentos de cegos; ou, em procedimento semelhante, a exuberância das imagens de Paschoal Samora em Mar de Dentro (2008) que, dessincronizadas das falas na banda sonora, tentam captar o fascínio pelo mar dos depoentes. São trabalhos que, com pretensões muito diversas, acabam se aproximando da gag estruturalde Os Filmes Que Não Fiz (2008), de Gilberto Scarpa: filmes que, a despeito de suas diferenças, parecem acreditar no conceito e na estrutura como uma nova pegadinha, uma nova virada de roteiro que, ao fim e ao cabo, fazem os filmes, em si, se tornarem secundários às idéias que os alimentam.
Nesse sentido, é interessante que alguns diretores que trabalham em chaves semelhantes alcancem resultados muito mais ricos. Em Luz Industrial Mágica (2008), de Kléber Mendonça Filho, o dispositivo (contracampos específicos de ações captadas em festivais de cinema pelo mundo) fica evidente logo nos primeiros segundos de filme, e é bom que seja assim, pois a relação que o espectador estabelecerá se dará exclusivamente pela força das imagens. São esses, também, os casos de outros dois dos melhores curtas exibidos em Tiradentes (e poderíamos, aqui, também incluir o jogo de projeções de Superbarroco, de Renata Pinheiro): Booker Pittman (2008), cinebiografia do jazzista homônimo encenada por Rodrigo Grotta; e Nem Marcha Nem Chouta (2009), de Helvécio Marins Jr. Ambos partem de dispositivos muito claros (em um, a dramatização livre; no outro, a relação entre documentarista e personagem como um duelo de olhares), mas usam esses conceitos como extracampo que se somam a imagens por si só suficientes em força expressiva. É o salto do cinema de gabinete para a realização, em si.
Se, com exceção de Engano, os filmes citados até aqui partem de uma relação mais ou menos clara com o documentário, é da ficção mais estrita que as soluções parecem transbordar. Basicamente por, na ficção, esse tipo de recurso se despir como puro artifício, sem os disfarces da ética e da reflexão metalinguística que muitas vezes embaçam a seara documental. Não à toa, o melhor dos curtas exibidos nessa última Mostra de Tiradentes parte de uma relação direta, e de vigor um tanto raro no panorama brasileiro, com a decupagem narrativa: No. 27 (2008), de Marcelo Lordello (foto), um dos mais eloquentes filmes sobre violência realizados no Brasil recente. Além de impressionar pela sofisticação e precisão de criação a partir de elementos básicos da linguagem cinematográfica (lentes; velocidade de filmagem; relação da câmera com os espaços e os atores; duração), o filme de Lordello se insere como resposta direta ao problema endereçado na primeira metade do texto: usar uma idéia (no caso de N. 27, uma situação) como premissa, e não como fim, para gerar uma bolha de tensões entre a câmera e o universo filmado. A essa resposta, fazem coro outros filmes de interesse, quando não pela força da mise-en-scène (Os Sapatos de Aristeu, de René Guerra; O Dia Em Que Não Matei Bertrand, de L.C. Oliveira Junior e Ives Rosenfeld; e Corpo no Céu, de Luisa Marques), pela fidelidade afetiva aos seus personagens (Eu e Crocodilos, de Marcela Arantes; ou Cidade Vazia, de Cássio Pereira dos Santos), muitas vezes centrados na adolescência – recorte bastante negligenciado na produção em longa metragem, mas olhado com muita generosidade nos curtas.
Para além desse recorte e de possíveis exemplos mais anêmicos dessa relação, saltam poucos filmes em posição estrangeira nesse grupo, partindo de um interesse bastante raro pela equivalência entre a plasticidade das imagens e a significação dos elementos em cena. Nesse sentido, os dois mais fortes seriam Muro (2008), de Tião , e Passos No Silêncio (2008), de Guto Parente. São filmes que não tentam estetizar um discurso (ou discursar sobre a estética), mas sim buscar uma equivalência entre as duas instâncias. Essa equivalência é surpreendente não só pela competência dos realizadores em chafurdarem um universo ficcional/simbólico/discursivo bastante hermético sem perderem o fôlego no processo (no caso do filme de Parente, o oposto inverso – mais interessante quanto mais se aprofunda em sua própria solidão), mas principalmente por serem exceções alvissareiras em um universo cinematográfico historicamente dependente de suas personagens. Nesses dois filmes, a tendência percebida nos primeiros parágrafos não é respondida com uma contra-proposta que a contorne (como no parágrafo anterior), mas sim pelo confronto direto: são, ambos, filmes que partem de conceitos previamente determinados, mas que, pela determinação em pensar cada imagem como um choque estético particular dentro dessa estrutura-mãe, nunca se reduzem a conceitos filmados.
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