Publicado originalmente na Cinética em Maio de 2009.
Por que “Stan Brakhage e os filmes”, e não algo como “o cinema de Stan Brakhage”? Em primeiro lugar, por uma parte considerável de sua vastíssima obra (quase 400 filmes catalogados, com margem para possíveis ausências) ser de dificílimo acesso, quando não totalmente perdida. Pensar Brakhage pelo conjunto de seus filmes é tarefa condenada à incompletude até para seus maiores especialistas, e demonstrar intenção de abrangência, mesmo a mais leve, seria um desserviço. Mas, mais do que isso, “Stan Brakhage e os filmes” por Brakhage fazer o cinema – essa entidade divina que nós, críticos, tantas vezes embaraçamos às nossas próprias palavras, deixando sua aura inventada fazer sombra sobre as partes de seu todo – parecer extremamente pequeno.
Brakhage parece, como ninguém, incorporar o termo norte-americano que, triste e significativamente, nunca adotamos: ele era um fazedor de filmes. “BY BRAKHAGE” – escrito à mão, no contato direto com o material. A despeito de toda e qualquer interpretação que seus filmes convidam, o trabalho de Brakhage sobre a película cinematográfica (e não é à toa que ele nunca trabalhou com meios eletrônicos, e que a experiência de ver seus filmes em vídeo seja incrivelmente distante das projeções em película) sempre parece iluminar a existência de algo que o pensamento, a palavra e a teoria não têm: um corpo físico. O cinema, esse leviatã de “alta cultura”, era pequeno para Brakhage, porque era, simplesmente, grande demais. Stan Brakhage ficava com os filmes.
Paradoxal, de fato, mas é tarefa quase impossível tratar da produção de Brakhage sem recorrer a paradoxos. São obras que parecem capazes de fazer todo o cinema que conhecemos se tornar, de uma só vez, mais sofisticado e obsoleto. Há, em seus filmes, uma impressão de brutalidade que esconde, na verdade, os mais leves sopros de delicadeza – como as letras riscadas cuidadosamente sobre a película aparecem como verdadeiras escavações projetadas na tela do cinema. Os corpos são despedaçados em The Act of Seeing With One’s Own Eyes (1971), mas nunca temos violência. Os filmes são corpos, e existe uma alma que não está neles. O rolo de Mothlight (1963) que roda pelas mãos da platéia é de fisicalidade fascinante, mas o arrebatamento da projeção não mais se apresenta aos olhos dos ávidos legistas.
Ao mesmo tempo em que os planos se esquivam da apreensão da vista, em sequências ininterruptas de epifanias que se tornam ainda mais fortes por nunca se deixarem pegar, os fotogramas perduram, se fazem notar. Algo está sempre a fugir, mas o mais angustiante é que o vemos apenas o suficiente para saber que ele é concreto. Aonde se esconde aquilo que sentimos? Brakhage faz filmes que sempre chamam a atenção para sua concretude, mas o que enche o silêncio da sala não está neles, tampouco em uma alma que inventemos como explicação mística para o mistério. Para Brakhage, como para James Joyce, toda epifania é produto de um trabalho que é ainda mais complexo por precisar inventar lugares para se esconder. Daí que levamos nossos blocos de anotações para a sala de projeção, e saímos com todas as folhas em branco.
Se Fred Camper diz que o plano das crianças no brinquedo do parque, em Anticipation of the Night (1958), já as mostra presas em um ritmo angustiante no mundo, ao mesmo tempo temos as luzes, as vibrações, a maneira como elas se aproximam e se afastam da câmera, sem que o toque seja possível. Ao mesmo tempo, temos uma dança. Toda conversa é prazerosa, como toda fala é insuficiente, pois não pode dar conta da maneira como a luz cruza a película – dos olhos de Brakhage, para os nossos. E, claro, essa insuficiência se dá com qualquer filme; mas nunca com a intensidade que se dá com os filmes de Brakhage. Pois quando a idéia de não-narratividade começa a cair por terra, e começamos a selecionar convenções narrativas que se manifestam mais ou menos explicitamente, logo topamos com uma imagem que quebra o padrão, que muda o percurso daquilo que acreditávamos estar vendo. Para amarrarmos um ou outro plano feito por Brakhage a uma idéia específica, precisamos ignorar uma infinidade de outros planos. Para dizermos que The Dead (1960) é um filme sobre a morte, precisamos ignorar a cidade que permanece viva – com suas pontes e cemitérios. Se pensamos em Creation como um filme sobre o nascimento da vida, logo percebemos que esse nascimento está, também, definhando para a morte. Estamos, sempre, perdendo a corrida.
Não há possibilidade de abstração, pois não temos o abstrato ou o concreto; temos, apenas, matéria. Sol que parece lua, e lua que parece sol. Um sujeito que olha, lá; e outro, aqui. “How many colors are there in a field of grass to the crawling baby unaware of ‘Green’?”, perguntava-se Brakhage. Toda palavra parece uma prisão; todo conceito é um novo green. As imagens te levam a diversos lugares – de um videoclipe em stop motion, aos escritos de Merleau-Ponty; do cheiro da tinta grudada nos dedos no maternal, aos monges de roupa açafrão em Síndromes e um Século (2007); de Walden (1968), às Cidades Invisíveis. Tudo isso importa muito pouco; isso é tudo o que importa. Entre as trocas de rolo, olha-se em volta para ver com quem compartilhamos a sensação de estar vendo algo tão especial. Cada um parece ter visto um filme diferente, visitado lugares que são só seus, girado em velocidades particulares. Brakhage dizia tentar filmar o que uma pessoa via quando fechava os olhos. Por mais que seguremos nossas pálpebras, secando as pupilas para não perder um frame sequer, olhar para dentro de si parece ser mesmo a única maneira de se ver os seus filmes.