Publicado originalmente na Cinética em Janeiro de 2010.
Cinema das origens
Um dos traços comuns a alguns dos filmes mais interessantes da atual safra brasileira em curta metragem é a maneira como eles por vezes testemunham diretores voltando ao que o cinema tem de mais básico, como se um certo processo de aprendizagem se desse em aberto, sem qualquer sombra de avexamento. Seja na obra de Carlosmagno Rodrigues, ou em trabalhos tão distintos como Nem Marcha Nem Chouta (2009), de Helvécio Marins, e O Menino Japonês (2009), de Caetano Gotardo, os filmes se tornam registros de uma pesquisa que reconhece o cinema como uma atividade não-ontológica, onde cada convenção vem embebida dos sentidos definidos em anos de uso pela história, aos quais os diretores se voltam com uma consciência inquisitiva: para que servem estes elementos, e quais eu devo usar para construir meu filme de maneira que ele melhor expresse o que eu desejo expressar?
No caso de As Corujas, o retorno é para se colocar no cruzamento fundamental do cinema: entre Georges Méliès e os irmãos Lumière. O retorno, porém, não se dá pela desgastada (e mal ajambrada) chave do “realismo X idealização”, mas sim por certas operações presentes de forma muito marcada nesses cinemas inaugurais, às quais Fred Benevides retorna em busca de certos efeitos. Benevides retoma os dois cinemas fundamentais, mas os percebe mais como caminhos complementares do que opostos na criação. Importa menos o que eles significam historicamente, e mais o que eles são capazes como impulso de expressão, onde as modalidades cinematográficas surgem como as palavras (e aí é ainda mais oportuno que, assim como Guto Parente, Fred Benevides expresse literalmente em seu filme um interesse pelo conceito literário de “transcriação”, de Haroldo de Campos). Da necessidade de se exprimir um sentimento ainda sem tradução no mundo.
De Méliès, herda-se um certo fascínio pelas possibilidades do truque cinematográfico, que aqui tomam o coração do filme. Seja pela projeção de Mothlight (1963), de Stan Brakhage, em uma das paredes, por um armário que cai misteriosamente na duração de um plano, ou principalmente pelo fascinante derretimento do verde das árvores no plano final (plano em torno do qual o filme parece gravitar, como se todo o resto fosse uma preparação para ele), As Corujas tem esse encantamento, bastante raro no cinema brasileiro, pela possibilidade do truque como expressão do fantástico (pensemos na ilha-menina de A Ostra e o Vento, de Walter Lima Jr.; ou nos zumbis de Mangue Negro, de Rodrigo Aragão), daquilo que não apenas se manifesta diante da lente; é preciso ser conjurado.
Mas, por outro lado, Fred Benevides subverte um outro dado essencial do cinema de Méliès, buscando em Lumière uma referência para a estrutura do filme: a absoluta descontinuidade entre os planos. Pois o truque de Méliès dependia da sensação de continuidade dos cortes cegos, onde o fantástico surgia da imitação do mundo, mas erigido de uma maneira como ele não pode se apresentar. Em Lumière, ao contrário, as situações sobrevivem como bolhas de tempo, desconectadas de qualquer coisa que pudesse vir antes ou depois. As Corujas também não é um filme de continuidade dramática, onde o enfileiramento dos planos em uma linha do tempo produz uma sensação de fluxo; ao contrário, as unidades de dramaturgia geram sentido pelo acúmulo de suas desconexões. Em As Corujas, o diretor filma um mesmo sentimento diversas vezes, como se cada plano fosse uma nova transcriação da mesma matriz, produzindo uma sensação de suspensão que já era marcante em P.F. – episódio assinado por Benevides no longa coletivo Praia do Futuro.O que muda são as intensidades, as modulações internas que – muito como os truques de Méliès – sustentam um encantamento pelo novo que diz o mesmo, e pela reiteração do que ainda não foi dito.
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