Publicado originalmente na Cinética em Janeiro de 2010.
Filmar o cinema
Ezra Pound dizia ser possível identificar facilmente um mau crítico quando ele começa por discutir o poeta, e não o poema. No caso de Carlosmagno Rodrigues, porém, é preciso abrir uma exceção. Em primeiro lugar, por Carlosmagno se misturar de tal forma com sua própria obra que estabelecer uma distinção entre realizador e realização simplesmente não é cabível. Estamos diante de um filho bastardo e consciente da atitude punk nova iorquina capturada por Legs McNeil e Gillian McCain no essencial Mate-me Por Favor, onde a arte não está somente nas obras, mas na própria maneira de se estar no mundo. Em segundo lugar, e mais importante, por seus filmes encontrarem luminosidade privilegiada no contato de uns com os outros, onde cada curta metragem se configura como uma pequena peça de um incessante work in progress. Vistos em alguma sequência (mesmo que randômica), os filmes de Carlosmagno Rodrigues parecem documentar o processo de um artista que busca conhecer para então aplicar cada pequeno elemento da linguagem cinematográfica – e sua obsessão pela numeração dos planos é apenas a evidência mais óbvia desse interesse. O diretor filma essa busca, para ao fim nos apresentar o resultado dela, a aplicação da convenção que, espera-se, ganha novamente vida por conta dessa compreensão.
O poeta, não o poema: Carlosmagno se filma como um diretor que tenta descobrir como usar as ferramentas que o cinema lhe oferece. Esse processo ganha uma literalidade evidente em Kalashnikov (2004) – onde trechos de um manual de técnicas cinematográficas aparecem como legendas, sobre as imagens – e é a razão de existência de Analogia do Verme (filme de 2007 que até engloba o mesmo objeto de “pesquisa” de Andrômeda, mas dentro de um inventário múltiplo de diferentes tentativas de dramaturgia – da música ao horror), mas está igualmente presente em filmes que aparentemente tratam de assuntos “externos” à metalinguagem, como Igreja Revolucionária (2007) e esta sua continuação, Andrômeda – A Menina Que Fumava Sabão (2009).
Carlosmagno usa, aqui, as mesmas personagens de Igrev, mas em uma chave diversa: saímos da intervenção direta da cena (da ficção) no mundo natural do filme de 2007, para a negação completa do movimento, que aqui é limitado à pose. Se antes o diretor empreendia uma pesquisa das possibilidades do campo (a cena) sobre o extracampo (o mundo), agora o interesse é pela pureza iconográfica e sua força enquanto tal. Em Andrômeda, Carlosmagno parecer tentar compreender o que é o plano cinematográfico, e quais são suas maiores potências. O caminho escolhido é o de produzir um paroxismo estrutural: se tirarmos do cinema aquilo que o distingue da fotografia (o registro do movimento no tempo e no espaço), talvez cheguemos à essência de sua finalidade. Assim como, em Dorian Green, o diretor apreendia o poder do choro cinematográfico induzido, para restaurar sua paradoxal verdade de encenação ao final (ou será o contrário?), agora ele simula retirar o movimento das “imagens em movimento”, para compreender, com isso, sua potência expressiva particular.
Como se faz uma fotografia se temos em mãos uma câmera que registra imagens em movimento? Andrômeda é um filme de poses, de retratos (muitos deles belíssimos) que tentam, em vão, resistir à sua necessidade de se movimentar. Um piscar de olhos ganha uma dramaticidade monumental; um olhar que encara a câmera é capaz de instaurar, em toda sua imobilidade, uma bolha intransponível de conflito. Ao cinema, talvez não seja necessário invadir violentamente o mundo instituído, como se fazia em Igrev; basta a agressividade da pose, de se fazer estátua, de se crer imagem. Se existe uma relação estética direta (e não inversa) com Igrev, ela não passa pela performance do grupo revolucionário em sua Igreja, mas sim pelas cartelas em freeze frame, onde as personagens apareciam estilizadas como colagens maoístas.
Mas para que serve a busca? Com que finalidade se filma a desconstrução, em mínimas partículas, da arte que se exerce? No último e mais belo plano de Andrômeda, a jovem protagonista segura um pássaro em uma das mãos, e tenta prendê-lo em uma pose. Ela traz o pássaro próximo ao rosto e olha para a câmera, mas, no momento exato em que a pose ganha um relaxamento que lhe confere uma aparência de naturalidade, o pássaro foge da mão da menina e voa para o extracampo – incluído no campo por seu reflexo em um vidro. O movimento é restaurado pelo primeiro objeto de estudo do cinema (ferramenta científica criada para a observação e decomposição dos movimentos dos animais – processo que mais tarde seria decisivo na invenção do avião como conhecemos hoje, por exemplo), que foge da pose (cena) para o extracampo (mundo) – instância espacial que se faz mais presente no cinema justamente por aquilo que a fotografia não tem: tempo, movimento e som – que, por sua vez, redefine o campo determinando a direção do olhar da atriz e o enquadramento da cena. Ali, naquela imagem capturada em sua própria fuga, Carlosmagno Rodrigues realiza um plano de cinema.