Publicado originalmente na Cinética em Novembro de 2010.
1.
Durante a reunião dos poetas e simpatizantes em Brilho de uma Paixão, de Jane Campion, entreouvimos comentários sobre um poema que especulava que, talvez, a décima musa pudesse ser o próprio amor. A referência às nove musas da mitologia grega será confirmada na cantoria que vem pouco depois (uma vez que as musas eram famosas por, quando jovens, harmonizarem suas vozes em um coro inigualável), e traz a Brilho de uma Paixão um insuspeito acento alegórico – já que, desde os primeiros minutos de projeção, nunca duvidamos estar diante de uma tragédia. Como é um filme sobre um artista – e que, inclusive, mostra uma relação que nasce e perdura, até mesmo após os créditos finais, por meio dos poemas -é inevitável buscar por articulações obscuras sob o tecido emocional impecavelmente trançado por Jane Campion. E se Brilho de uma Paixão é um filme sobre arte, o é também, inevitavelmente, um filme de amor.
Nos primeiros planos, uma mão costura pontos delicados em um tecido. Antes mesmo de haver John Keats, há Fanny Brawne (Abbie Cornish) – a protagonista que a câmera acompanhará com fidelidade ao longo do filme. Antes que Keats seja apresentado, Fanny Brawne tem uma discussão com Mr. Brown (Paul Schneider) que sugere rusgas passadas, em uma relação que já conhecemos em esgarçamento. Suas conversas serão um constante jogo de forças – mais uma tensão sem vencedores possíveis do que propriamente um diálogo filosófico, como em Morte em Veneza – e seguirão permeando, em quadro e fora de quadro, todo o filme. São personagens condenadas à interação do plano-contraplano. Antes de Keats, há Brawne e Brown: personagens unidas em significado pela semelhança dos nomes, mas cuja sutil diferença de grafia permite vislumbrar o inconciliável.
Keats – o poeta- surge em meio aos dois, e entre eles ficará até sua última aparição, antes de embarcar para um exílio que não permite mais imagens de vida. Keats sai de quadro mas, assim como chegaram antes, Brawne e Brown permanecem para além de sua presença. Para sobreviver, Keats precisa estar entre os dois: Brown, o sujeito que lhe permite criar e o acompanha no ofício diário, a corporificação da techné (ou do craft); e Brawne, sua musa – e, como tal, a manifestação plena do amor e da beleza. Ao poeta, cabe tentar administrar essas forças incompatíveis, necessariamente complementares ao seu ofício. Fanny Brawne – mulher que se mistura à natureza como só o amor poderia ser capaz, obrigando as estações a mudarem de acordo com o seu humor (ou o contrário, como logo veremos; a natureza antecede e determina a beleza) e se harmonizando perfeitamente às flores que colorem a paisagem – chega à janela do escritório enquanto Keats e Brown tentam escrever. Ela acena para o poeta, como se fosse a personificação da própria vista para o jardim, de tudo que aquele gramado verde tem de convidativo ao gozo da simples contemplação. Brown – homem do ofício – tenta fechar a janela, e é repreendido pelo artista: “se não a vejo, fico ansioso”.
Se não há dúvidas que Keats é o poeta, a construção das personagens de Fanny e Brown é mais sutil. Embora também seja artista, a relação de Fanny com a arte é de outra natureza. Ao contrário da poesia, sua criação é extremamente material: desde o primeiro plano, a costura é a arte do toque, do contato, do aperfeiçoamento de uma beleza que cobre os corpos, que procura um pedaço de fita para expressar o amor por meio de uma cesta de biscoitos, que quer ser excepcional, ser “a primeira a tecer uma gola tripla plissada em cogumelo” na cidade. Amar é – em especial quando se fala do Romantismo – se afirmar único. Brown, ao contrário, nunca é tido como um poeta de fato – ao menos não na acepção moderna do termo. Ao contrário, nada em sua personalidade parece excepcional. Se há uma poesia no trabalho de Brown, ela está mais próxima da antiga concepção grega, na qual – citando João Ricardo Moderno, em A Estética da Contradição – “o cânone, ou seja, as normais gerais, era o que de mais importante havia na produção material grega. Aplicar as regras sem criar era superior a qualquer rasgo de individualidade”. Ele é, como desmascara Fanny, o macaco; aquele que, mesmo sem o apuro do raciocínio e a liberdade dos devaneios, pode encontrar uma pedra e batê-la contra outra até formar uma lança que lhe sirva para caçar. A techné, portanto, é uma habilidade artisticamente indistinta: Brown pode, igualmente, ajudar John Keats a atingir a perfeição e em seguida escrever um poema sobre bolinhos para galantear a empregada e levá-la pra cama. Nos dois casos, há sucesso.
Brilho de uma Paixão reconhece, em Keats, essa idéia da arte moderna (ou da estética) que precisa conjugar a techné com a vivência da beleza (do amor, enfim) para então criar algo perfeito, algo que confirme que – citando novamente o livro de Moderno, pinçando uma definição do Sofista, de Platão – “a poética seria a arte de produzir aquilo que falta na natureza”. Brown busca uma utilidade para o embelezamento. Brawne embeleza o que tem utilidade; como decorrência da natureza, ela não pode escrever (ou, palavras dela, sequer entender) a poesia de Keats. Ao final, já sem o poeta, ela volta – com um poema – a se integrar com a floresta. Ele, por sua vez, é o artista estético, aquele que coordena a prática material com a experiência do sublime (a epifania) para criar algo que não existe na natureza. Keats é o poeta; Brawne – o amor – apenas se enxerga refletida em seu trabalho (como sugere o primeiro momento de intimidade entre os dois, no qual a duplicidade produzida por um espelho inspira, em Keats, uma piada).
2.
Mas se Brilho de uma Paixão é um filme de beleza e arte – e que, ao contrário de Fanny Brawne (o amor), precisa chegar ao fim -é inevitável que ele seja, também, sobre a História. Nesse sentido, o filme de Jane Campion é uma espécie de continuação direta, mesmo que velada ou inconsciente, de Maria Antonieta, de Sofia Coppola. Em primeiro lugar, há uma continuação epocal: John Keats nasceu apenas dois anos após a morte de Maria Antonieta – e de tudo que ela simbolizava. Durante o período de vida da rainha francesa, o historiador de arte Johann Joachim Winckelmann apontaria para o Torso de Belvedere, uma estátua sem cabeça ou membros, e declararia o nascimento da estética. Brilho de uma Paixão já nasce, portanto, sob a égide dessa nova concepção de arte – aquela que Sofia Coppola introduzia à força (e daí saía o choque político de seu filme) nos palácios de Maria Antonieta (2006). Mas, antes de qualquer coisa, há o ócio. Maria Antonieta e Brilho de uma Paixão são ambos filmes que decorrem do ócio, e que o valorizam a cada nova cena. No filme de Sofia Coppola, esse ócio ganha uma leitura (para muitos, negativista) absolutamente contemporânea: a vida de Maria Antonieta contrasta a ritualística real à gratuidade dos passatempos fúteis; alguém se apaixona por, essencialmente, não ter nada melhor a fazer.
O cinema de Sofia Coppola enxerga o gesto rosselliniano na redução da História (ou melhor, de sua transposição para o cinema) a perfumaria, a uma orquestração de cores e formas absolutamente estonteante que reafirma, a cada segundo, a subjetividade de quem olha. Winckelmann aponta para o Torso não-identificável e diz: “cá está Hércules!” Citando Rancière, um Hércules lido apenas pelos músculos do torso que representavam “o movimento ultrapassado, o movimento igualado ao repouso, o trabalho igualado à ociosidade”. Um Hércules que talvez sequer seja Hércules, mas que ganha peso estético justamente nesta deliberação: é Hércules! Sofia se alinha perfeitamente a essa decisão estética – que, como tal, só pode ser uma declaração inventada – onde a arte, lembramos, oferece à natureza o que ela não tem. A cada mês de espera por novas palavras de Keats, Brawne morre mais um pouco trancafiada em seu quarto. Com sua vivacidade, vão-se as borboletas. Distante do poeta, a natureza existe, mas o amor definha lentamente.
Brilho de uma Paixão parte de um lugar diferente de Maria Antonieta, pois seu ponto-de-vista não é o de Keats – o poeta estético – mas sim o de Brawne, a artista do toque e da matéria. A ociosidade ganha, aqui, um sentido diferente. Se em Maria Antonieta tínhamos essa bomboniere de artigos inúteis (logo, artigos estéticos), na vila de Brilho de uma Paixão a arte é uma atividade cotidiana que preenche o tempo flutuante daquela comunidade. Brawne se dedica à costura, mas faz também aulas de poesia e de dança; Keats é o poeta que participa do coro, que recita à mesa de jantar, e que usa a recepção da própria comunidade como termômetro de valor para seu trabalho (não à toa, nos diz a legenda que ele morrera acreditando ser um fracasso). É natural, portanto, que Jane Campion nunca se permita os choques gráficos e semânticos do filme de Sofia Coppola. Brilho de uma Paixão dá um passo atrás para olhar mais adiante, trocando a afirmação efêmera (mesmo que definitiva) do presente de Maria Antonieta (lembremos também que a estética é uma projeção do que de mais íntimo há no sujeito, logo, algo que o supervaloriza: Winckelmann acentua a perfeição do corpo masculino no Torso também como forma de expressar sua homossexualidade) por uma discrição do olhar que acreditar servir a algo que lhe é externo.
Jane Campion, como Keats, precisa se anular, precisa morrer – mesmo que seja na discrição dentro da obra – para que a arte possa perdurar, no fade out dos créditos finais. Suas armações trabalharão, sempre, em um nível de subreptícia discrição. Quando Brawne se apaixona por Keats, o destino é anunciado na morte do irmão de seu amado: “Mr. Keats has died”. Essas palavras pairarão sobre todo o filme, configurando a tragédia quando o romance mal se anuncia.Mesmo o arroubo mais absurdo de paixão – quando um quarto inteiro é tomado por borboletas – é antecipado pela cena dos irmão mais novos de Brawne caçando borboletas no bosque. Enquanto Sofia Coppola acentuaria seu discurso sobre o “torso” colocando um par de tênis All Star entre os sapatos da rainha (plano que demarca a intervenção direta da artista e conceitua o paradoxo deleuzeano, no qual o estilo é a diferença subordinada ao idêntico), Jane Campion fala sobre o “torso” como se apenas amplificasse as palavras dele próprio. Brilho de uma Paixão está adiante de Maria Antonieta a exata medida que faz, dele, um filme tanto mais clássico.
3.
Por outro lado, Brilho de uma Paixão é um filme de amor. Um filme sobre um casal que se apaixona e cria uma intimidade que move todas as decisões de personagens e diretora. Em dado momento, Keats explica a Fanny a essência de um poema. Ele, muito romanticamente, aconselha que ela não procure por significados escondidos, ou tente entender exatamente o que cada personagem representa. Diz que quando se mergulha em um lago não se quer apenas chegar à outra margem, mas principalmente deleitar-se com a sensação da água. Tal cena faria deste texto um contrassenso. Mas há também as cenas entre Keats e Brown, e todos os comentários sobre a métrica perfeita, a colocação inusitada das rimas. As conversas que afirmam que, para haver a sensação de água, um lago precisa, antes de mais nada, ser água, ter uma composição material, estar no mundo de uma única maneira que poderá ser experimentada de diversas formas. E se estamos dentro dele, há a sensação da água; mas se nos colocamos de fora, ele reflete o que está à sua volta, e os olhos que olham pra ele. Em ambos os casos, há sempre o mesmo e único lago.