Publicado originalmente na Cinética em Junho de 2011.
Dez anos depois: Millennium Mambo e o futuro do presente
Não é preciso levar em conta os plagistas e os diluidores para perceber que Millennium Mambo é um filme essencial para se ter uma dimensão mais exata de o que seria esse tal “cinema contemporâneo”. Em um primeiro momento, deixemos os procedimentos de lado, pois todo o esforço de percebê-los é atropelado pela beleza estonteante de todos aqueles rostos e luzes, mas também pela relação, tão próxima quanto uma segunda pele, que o filme estabelece entre o espectador e aqueles personagens. Não importa quantas vezes eu retome Millennium Mambo, mesmo quando vou até ele munido dos mais frios e científicos objetivos; poucos planos depois, já estou completamente envolvido com a história de Vicky (Shu Qi) e Hao Hao (Tuan Chun-hao), seus sentimentos à flor da pele, sua relação violenta, imprevisível e tão absolutamente crível. Para o inferno com a câmera, a movimentação dos atores, a fotografia!; temos ali uma história de amor e não há nada mais importante que isso no mundo. Não, ao menos, enquanto vemos o filme: durante a projeção de Millennium Mambo, não há dúvidas de que Vicky é o mundo. Todo o resto importa pouco, quase nada.
Mas não há cinema sem História, e não é somente por ser um filme pleno que Millennium Mambo se torna um filme-chave. É perceptível que Michelangelo Antonioni, talvez a antena mais sensível de sua época, criou um problema para o cinema que lhe é posterior: por que filmar, se a comunicação, a relação entre duas pessoas, é impossível? Qual sentido o cinema ainda pode ter diante da parede impenetrável do outro, a encarnação de todo o mistério da vida? Não é descabido dizer que, desde Blow Up (1966) ou Profissão: Repórter (1975), o cinema, com raras exceções, tem lidado com sua própria impotência de maneira frontal e crucial. E por mais belos que esses filmes possam ser – pensemos em Wong Kar-wai, Tsai Ming-liang, Claire Denis e o próprio Hou Hsiao-hsien – há essa frequente sensação de que os filmes nos jogam em um beco sem saída. Mais do que enfrentar esse mal do século, esse cinema contemporâneo (já não mais tão contemporâneo assim, uma vez que sujeitos como Apichatpong Weerasethakul, Pedro Costa, Kyioshi Kurosawa e Miguel Gomes nos oferecem proposições novas e próprias) frequentemente se limitou a constatar sua existência.
Millennium Mambo não resolve ou sequer enfrenta todas essas questões, mas é muito provavelmente o filme definitivo sobre e a partir delas. O que ele faz é capturar esse sentimento de mundo com uma beleza e precisão ímpares, e apontar a necessidade de superá-lo: é preciso tomar uma atitude, sair de Taiwan – de seu mundo asfixiantemente familiar, por mais encantadoramente destrutivo que ele seja – e rumar sem medo de encontro ao desconhecido – no caso do filme e de Hou Hsiao-hsien, em seu filme seguinte, o Japão, lugar até certo ponto próximo e familiar, mas absolutamente alienígena em sua língua, hábitos e comportamento (nas últimas cenas em Hokkaido, Vicky imita o jeito dos japoneses falar, antecipando uma cena parecida de Café Lumière).
Millennium Mambo tem, portanto, uma motivação de dramaturgia absolutamente clássica: a necessidade da heroína superar os limites de seu próprio ser. Mas Hou Hsiao-hsien encara esse motif de maneira, esta sim, intrinsecamente moderna. Antes de mais nada, por este ser estar em constante modificação. Vicky narra sua vida de um ponto futuro – mais exatamente, dez anos depois dos fatos narrados, coincidentemente em 2011 – mas essa narração é feita em terceira pessoa, como se a protagonista olhasse para o passado e não mais se reconhecesse nele. Ela é um outro. Mais do que uma personagem, Vicky é a encarnação do devir, desse magma borbulhante e indefinível que está impresso tanto na decupagem de movimentos de Etienne-Jules Marey – logo, no princípio fundador do cinema – quanto na duração deleuzeana. A idéia de princípio de cinema é algo que acentua esse sentimento de que Millennium Mambo é um filme definitivo sobre o primeiro século do cinema – lembremos, inclusive, que a avó de Yubari, o garoto de família japonesa, está completando cem anos de idade, e sua cidade é destacada no filme não só por um festival anual de cinema, mas por ter uma rua do cinema, local onde o filme termina. Millennium Mambo é um filme sobre o paradoxo temporal que o cinema expõe como seu maior dilema: o presente é tudo que temos; mas o presente, ora, ele não existe.
As personagens são filmadas como bolhas flutuantes nesse devir; bolhas que se esbarram, se chocam, se transformam, mas que permanecem inabalavelmente separadas, mergulhadas em seu próprio ser: as drogas, os fones de ouvido, as paredes, as luzes, etc. Diante dessa impenetrável individualidade, o que o cinema pode fazer é promover proximidade, fazendo panorâmicas que conectam as personagens e usando a tele-objetiva para aproximar os corpos, para obrigá-los a conviver, mas ao mesmo tempo para dissolvê-los no espaço, separados pelo desfoque que evanesce como as velas, a fumaça dos cigarros, e as moedas que somem e reaparecem no truque de ilusionismo que marca o segundo plano do filme. Essa relação entre proximidade e distância, essa sensação de que cada personagem em tela é igualmente nosso duplo e uma esfinge, já está anunciada no já antológico prólogo do filme: a câmera capta Vicky na efemeridade de uma passarela, transitando no breve ínterim entre dois pontos que desconhecemos, em um flerte intermitente com a câmera e a platéia, seduzindo nosso olhar sem nunca nos mirar diretamente nos olhospara, no momento seguinte, virar o rosto, negando a frontalidade, mantendo-se enigmática, indecifrável. As personagens de Millennium Mambo deleitam-se em sua própria subjetividade, no gozo constante de um presente irrepetível e inapreensível a elas mesmas.
Essa relação com as personagens motiva, de certa forma, a própria estrutura narrativa do filme. Hou Hsiao-hsien incorpora uma incerteza de registro latente dos cinemas modernos, mas até mesmo essa incerteza é representada de maneira incerta. Se em Hiroshima, Mon Amour (1959), de Alain Resnais, ou A História de Marie e Julien (2003), de Jacques Rivette, as personagens são uma mistura de sua existência concreta com seus sonhos, desejos e projeções, é preciso que essa coexistência – ou seja, que a separação e a posterior mesclagem desses registros – fique clara. Em Millennium Mambo, tal distinção já não é mais possível: nunca saberemos se Vicky foi de fato a Hokkaido ou se aquilo é sonho ou imaginação, pois as fronteiras entre esses registros de existência se tornaram absolutamente indiscerníveis. Vicky é tudo aquilo que ela experimentou, e o filme nos apresenta essa experiência seguindo sua recomposição pela narração da própria personagem; o filme é uma coleção de tudo aquilo que a constitui.
Também por isso, a mise en scène é marcada por uma recusa quase sistemática (mas apenas quase, pois Hou Hsiao-hsien está disposto a quebrá-la quando isso lhe parece necessária) de começar as cenas já centralizando o seu núcleo narrativo – em geral, a protagonista. Desde o primeiro plano, a câmera de Hou Hsiao-hsien parece sempre obrigada a procurar as personagens no espaço, a vasculhar cada cômodo até encontrar algo ali que prenda seu olhar, em um magnetismo que, uma vez estabelecido, se torna inquebrantável. Em um plano marcante, vemos Vicky caída ao chão em frente a porta de Jack (Jack Kao), pela imagem de uma câmera de segurança; com uma panorâmica, Hou Hsiao-hsien sairá do monitor para o mundo real, da mediação para o confronto direto, do preto e branco para as cores. É como se, mesmo na observação direta das personagens, o filme precise superar uma primeira mediação, um primeiro filtro, uma primeira pele que o separa daquilo que ele filma. Se, por um lado, isso acentua a sensação de que há um recorte deliberado e até certo ponto aleatório daquele universo – um filme que poderia ser sobre qualquer outra pessoa, como naquele também antológico plano de Café Lumière em que a câmera perde de vista a protagonista durante uma panorâmica – por outro, cria o suspense constante de que estamos vendo aqueles rostos sempre pela última vez.
Aí parece estar, de fato, o coração do filme: todo contato entre duas subjetividades, mesmo o mais íntimo, é breve, parcial e fugidio. Em sua narração final, Vicky – na concretude de seus sonhos que é Hokkaido – lembra-se de uma vez em que, enquanto fazia amor com Hao Hao, ela foi acometida pela sensação de que ele poderia derreter a qualquer minuto, como um boneco de neve sob os primeiros raios de sol. “Foi triste fazer amor naquele dia”, ela diz. Millennium Mambo é muito sobre essa sensação ambígua do contato com o outro, em sua trágica e fulgurosa brevidade, mesmo que esse outro seja nós mesmos, em nosso passado ou futuro. Toda relação é triste e amorosa. Toda impressão é como um rosto marcado na neve, fadado a ser recoberta e reesculpida pelas camadas do tempo. E como o presente é incapturável, e a consciência de sua existência já o transforma automaticamente em passado, a angústia que marca essa orfandade de si mesmo não é somente um mal do século; é aquilo que costumamos chamar de existência.
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