Publicado originalmente na Cinética em Junho de 2011.
No caso de Hou Hsiao-hsien, a oportunidade de ver seus filmes em conjunto se mostra valiosíssima para que o espectador possa realizar com sua obra um procedimento que é essencial ao seu próprio cinema: observar as reações e variações dos filmes e do olhar do artista à passagem do tempo. Afinal, no que se centra o cinema de Hou Hsiao-hsien senão justamente nessa observação, construída, propiciada e potencializada pelos próprios filmes? Os filmes de Hou são, em sua camada mais superficial (e em nada menos profunda), um registro da incisão do tempo sobre as coisas, as personagens, as cidades, a luz, a própria história. Tudo é inscrito na duração do tempo, pois só assim essas transformações se fazem realmente notáveis. Pode-se argumentar que isso é de fato uma característica do cinema, e que todo filme é também um registro do mundo ao longo de uma duração; poucos cineastas, porém, se dedicaram tanto a potencializar essa vocação tanto quanto Hou Hsiao-hsien.
Como referência para uma leitura histórica, dois filmes apresentam planos praticamente idênticos: em Poeira ao Vento (1986) e em Adeus ao Sul (1996), Hou Hsiao-hsien filma “subjetivas” de trens que adentram e irrompem a escuridão de túneis. A tela negra – o pré-fílmico – é contaminada por uma pequena mancha verde, que vai se expandindo e expandindo até tomar toda a tela, cobrindo o negro com a vegetação e a claridade que vem das profundezas do além-tela em direção ao espectador. Além de serem duas das obras-primas de Hou, Poeira ao Vento e Adeus ao Sul são marcados por esses planos gêmeos, que servem como âncora para uma possível leitura histórica da carreira do diretor. Pois a despeito da semelhança dos planos, a presença deles em ambos os filmes grifa uma transformação clara no sentido que eles carregam em ambos os filmes – ou, mais exatamente, do sentido que se transforma entre um filme e o outro. Poeira ao Vento é, de certa forma, o acabamento (no sentido de esmero pela perfeição, e não de esgotamento) de uma relação do cinema com a história que Hou Hsiao-hsien vinha aprimorando ao menos desde Os Garotos de Fengkuei (1983), e que estaria presente ainda em filmes como A Cidade das Tristezas (1989). Já Adeus ao Sul surge em sua carreira como a possibilidade de saída de um esgotamento desse cinema anterior, uma crise que já se fazia evidente em Bons Homens, Boas Mulheres (1995), filme de transição para o qual Adeus ao Sul aparece como uma espécie de antídoto. Adeus ao Sul é, portanto, o rompimento com certas amarras dos domínios dos filmes anteriores, e a mola propulsora que impulsionará definitivamente seus filmes seguintes.
Em ambos os casos, há o trem, um dos objetos constantes do cinema de Hou. Como destaca Francis Vogner dos Reis no catálogo da mostra, o trem aparece no cinema desde sempre como uma metáfora, por vezes para a História, e mais frequentemente para o próprio cinema. Além de serem, ambos, filhos de um mesmo espírito (a máquina a vapor; a revolução industrial; a vocação científica do cinema em observar e esquartejar os movimentos dos animais para construir máquinas que o reproduzam, como faz o trem), o trem é também um dos primeiros exemplos de um enquadramento sobre imagens em rápido movimento – no caso, as janelas do próprio trem. Mas enquanto Poeira ao Vento (foto) começa com o tal plano subjetivo, para em seguida filmar os protagonistas dentro do trem, Adeus ao Sul já começa ao lado de seus protagonistas, dentro do trem. O movimento da máquina é sentido apenas pela vibração dos trilhos na banda sonora, e só no plano seguinte teremos um ponto de vista do trem (neste momento, contrário, apontando para tudo que ele deixa para trás).
A inversão de montagem é mínima, mas seu efeito é devastador: Poeira ao Vento, como muitos dos filmes da primeira fase da carreira de Hou, são regidos por uma espécie de “forma maior” – concentrando-se em personagens que, de alguma forma, ajudem na compreensão da História; Adeus ao Sul, ao contrário, se atira em um tempo histórico para se embrenhar nas curvas da subjetividade de cada um daqueles personagens. Mesmo em filmes seguintes que assumem a História como motor, o eixo a partir daqui será sempre o das personagens – não à toa, os tempos mudam, mas o casal de Three Times (2005) é sempre o mesmo. O cinema de Hou abandona, portanto, uma linearidade inevitável à própria historiografia, e se dedica principalmente às modulações internas de cada cena, perdendo o caráter finalista da construção narrativa. Usando os termos de Walter Benjamin em “O Narrador”, é como se Hou Hsiao-hsien passasse da crônica (forma de narrativa que seleciona episódios para “representá-los como modelos da história do mundo”) para o romance (forma que teria como centro a condensação do “sentido da vida”).
Não é por menos, portanto, que Adeus ao Sul seja lembrado principalmente por seu já antológico passeio de motos nas montanhas. Pois o filme faz, em certa medida, justamente a transição do cinema de trens para o cinema de motos. A partir deste momento, seus trabalhos deixam de delimitar trajetórias teleológicas, uma “moral da história” (termos novamente benjamineanos) que depende de uma partida e de um destino específicos, e passam a se dedicar à flutuação interna do próprio passeio, do movimento em seu próprio gozo.
Afinal, o que faz Adeus ao Sul além de frustrar todas as possibilidades narrativas que o próprio filme suscita? Pouco importa se um esquema da venda de porcos foi ou não concretizado; importa que ele motivou um movimento, obrigou que suas personagens saíssem de seu lugar, e é justamente essa flutuação que é capaz de dar conta desse novo estado de mundo. Ao longo do filme, é como se Hou chamasse constantemente à atenção a desimportância desses desfechos. Não à toa, o filme não termina: pára, atolado em seu próprio acidente, impossibilitado de continuar em movimento – e lembremos que, para Walter Benjamin, uma das características inexoráveis do romance é justamente a intransponibilidade de seu fim. A partir de Adeus ao Sul, o cinema de Hou Hsiao-hsien será invadido definitivamente por imagens dessa pulsação, seja nos passeios de carro de Vicky e Jack em Millennium Mambo (2001), nas voltas de moto da terceira parte de Three Times, ou no vôo alegre e sem rumo do balão em A Viagem do Balão Vermelho (2007). Isso não tira de seus filmes uma dimensão histórica – assim como as ondulações dos momentos sempre estiveram lá, apenas não com o mesmo destaque – mas a inversão de polaridades de uma “forma maior” para uma “forma menor” parece mais perceptível na ressignificação do trem nos filmes posteriores. Essa mudança fica especialmente clara em Café Lumière (2003): o trem existe enquanto tal, mas Hou Hsiao-hsien se interessará principalmente pelas várias maneiras de cada pessoa se relacionar com ele. O trem (a história, o cinema) pode ser visto como meio de transporte, mas também como o sangue que circula nas veias da cidade, no brilhante plano final, ou ainda como matéria bruta de som, imagem e experiência – como faz a personagem de Asano Tadanobu, gravando os ruídos dos trilhos e das estações, e dando novo sentido gráfico ao objeto em um desenho no computador. De Poeira ao Vento para Adeus ao Sul, os trens mudam com o cinema: de onde viemos e para onde vamos é algo insignificante; o que importa de fato é a plenitude da experiência individual de se estar em um trem, em um vagão, em um tempo, em um plano