Publicado originalmente na Cinética em Maio de 2012.
Transbordando gêneros
Há muito a crítica de cinema que apelava às noções do “bem feito” ou do “mal feito” foi justamente escorneada como demodé. Ela era símbolo da legitimação apriorística do cinema da Retomada, em que os méritos de um filme eram julgados por pressupostos técnicos que sagravam a maneira de dizer acima das palavras ditas. A reação, por outro lado, somente girava a moeda, sem perceber que, mais do que oscilar entre forma e matéria, era justamente a separação do inseparável que atravessava os ossos da canelada: queremos filmes mau feitos. A técnica – e, junto com ela, a tradução insuficiente da techné – era jogada para escanteio, como parte maldita de um cálculo mal feito.
Porém, é miopia não perceber que o “bem feito” não é somente uma qualificação técnica, e que essa técnica também não pode ser excluída da equação: não há texto que sustente sua força através dos percalços da má escrita – algo que não é exatamente questão de estilo ou de gramática, mas de se dizer o que se quer dizer da forma que a compreensão seja próxima de sua vontade de origem (seja ela de bom gosto, mau gosto, ou sem gosto nenhum). Jiboia impressiona, logo de cara, por reivindicar esse termo tão esquecido: é um filme extremamente bem feito, e isso diz menos respeito à grua que dá as caras em determinado momento, à “qualidade” que redunda em aspas de ironia, e mais à maneira como os elementos do filme – as pequenas estruturas de matéria – são cuidadosamente distribuídos na duração da projeção (o tal poder do cinema de gênero) para ressaltar as conexões que já estão no mundo (a crônica de costumes).
Filmes sustentados por tamanho cuidado com sua arquitetura interna podem se equilibrar facilmente em um único pilar, sem que a síntese se torne metonímia. A partir de uma cena, um plano, um quadro, um rosto de ator, tudo pode ser dito e já está dito, pois não há espaços para gratuidades (a não ser que a gratuidade seja essencial – a gratuidade nada gratuita). Em Jiboia, tudo se resume a um fio de uma navalha. É ela que cortará os cabelos de Gracekelly (Gabriella Vergani) e realizará seu desejo de ficar igualzinha à atriz da revista (“só os peito que não”), e que voltará para cumprir a parte perversa do sonho inacabado, rasgando o torso da menina como uma tentativa desesperada de reter uma inocência que ajudou a usurpar. É ela que abrirá as costas do médico (Pedro Aguinaga), pelo puro acaso de ele estar de costas (porque o desejo é de cortar outra coisa), preservando que a “princesa” da Rua Augusta seja (voluntariamente) violada, assim como é ela que Aurora (Gilda Nomacce) correrá sobre a calcinha de sua jovem e virginal amante, tentando mantê-la sob seu controle.
Imantada pelas convenções do(s) gênero(s), em Jiboia, a navalha – ferramenta que realiza sonhos, mas que leva como pagamento sempre um naco de pureza – é a própria câmera de cinema, que acompanha seus movimentos em tilt down sobre o corpo de Gracekelly, e corta suas mechas de cabelo mal pintado. É ela que ditará a trajetória do filme, de ferramenta de graça (em amplo sentido: graça da Virgindade; graça dos agraciados pela beleza; graça como humor) à ferramenta do horror, impondo ao filme mais do que uma mudança de tom: uma mudança de gênero. Estamos – por vários motivos, inclusive os mais óbvios – em terreno próximo do explorado por Pedro Almodóvar em A Pele que Habito (2011), com a diferença de que a mudança de gêneros aqui não provoca choques; ao contrário, o terror e o humor são fases diferentes de uma mesma matéria em movimento, como o locutor de rádio que é capaz de, da mesma forma que anuncia “a nossa música”, fazer troça de uma menina morta em um ritual de magia negra sem, com isso, tirar dele seu peso ontológico.
A habilidade com que Rafael Lessa consegue fazer esse trânsito – trânsito, e não transição – impressiona como domínio do cinema de gênero(s), mas Jiboia é também uma crônica social. Pois, assim como há a navalha, há também o programa de rádio, as revistas de salão, o silicone e o corte de cabelo das atrizes de novela, o laquê que vira lança-chamas, a “coceirinha” que chantageia por mundos e fundos – partes integrantes mas nem sempre flagrantes desse encontro entre a graça e o horror. O desejo de quem quer ficar “seiuda” só pode ser cumprido pela mutilação da matéria, dilacerada por um rasgo – um sorriso forçado? – de ironia e horror. Como apresentação de um contraplano quase nunca visto (a noite de um salão de beleza) para um plano midiático excessivamente propagandeado, Jiboia se aproxima de Cidade dos Sonhos (2001), de David Lynch, com a diferença de que, no filme de Lynch, tudo estava atrelado a um ponto de vista específico de uma personagem. Em Jiboia, não há outro ponto de vista possível que não o da própria navalha. A Gracekelly, o locutor de rádio reserva, de uma forma ou de outra, a inevitabilidade de ser, mesmo que por breves segundos, o que ela estava condenada a querer ser: uma celebridade.
O melhor cinema de gênero se destaca não pela capacidade de emular este ou aquele estilo, mas antes pelo poder de imantar cada pequena estrutura de matéria – a rigor, o mundo – que, no cinema, se traduz em objetos, atores, espaços – de forma que ela seja atraída por seus pares opostos, se aproximando e se transformando – a elas mesmas e ao mundo no qual elas estão inseridas (a cena) – a cada nova aproximação. Por outro lado, a melhor crônica de costumes é aquela que, mais do que criar conexões entre esses mesmos elementos, percebe as ligações que já existem no mundo, e que, por alguma força ou motivo, ainda não tinham sido trazidas à luz. Desse encontro, por si dependente de diferentes encontros, nasce Jiboia.