Publicado originalmente na Cinética em Setembro de 2010.
Sob o risco da ficção
A Última Estrada da Praia se destaca de cara do panorama de um “jovem cinema brasileiro” por fazer, historicamente, esse movimento conservador: o tableau é trocado pelo plano/contraplano; a estrada deixa de ser fim e retoma o trânsito original dos road movies; as personagens voltam a ganhar contornos mais profundos, trocando a auto-suficiência da presença por uma relação constante com um passado escondido e sempre influente. Trata-se de um “estranhíssimo” filme onde há, de fato, personagens, motivações, arco dramático, narrativa, decupagem e outras convenções cinematográficas que, aos poucos, vêm sendo trocadas por um grupo mais rarefeito, mas ainda mais estanque, de novas convenções.
Na verdade, a intensidade com que o filme faz esse retorno (que, na atual conjuntura, está bem longe de ser um retrocesso) aprofunda ainda mais essa estranheza conjuntural: em toda sua aparente leveza, A Última Estrada da Praia é um filme alegórico, repleto de simbolismos, com personagens que encarnam valores claros, que buscam fazer sentido. É inevitável que essa estranheza traga um refresco como princípio e como fim. No caso, isso acontece por a vocação narrativa de A Última Estrada na Praia ser levada a cabo com dedicação e algum grau de inquietude diante do mundo e do próprio cinema.
No começo, o que temos é um plano de um personagem deitado na praia – personagem que o filme creditará, sem reservas metafóricas, como “desconhecido”. O desconhecido, portanto, é o princípio de tudo: mudo, anterior a tudo e a todos, com um passado enigmático mas sempre presente (lembremos que ele carrega consigo apenas uma nota de dinheiro que não vale mais nada), e sempre disposto à interação. Quando o grupo de amigos que protagoniza o filme resolve levar o desconhecido – que, muito acertadamente, permanecerá como um mistério de opacidade até o final do filme – em uma viagem à praia, essa simples ação nos diz, de maneira física e suficiente, o que aquela viagem representa.
Existe, no filme, esse lado de exercício classicista de nos apresentar primeiramente os índices, para que com eles possamos “fechar a conta” de tudo que vem em seguida. A clareza dessa intenção não é, porém, garantia de seu funcionamento. Pois o problema maior dos filmes narrativos é que eles são extremamente difíceis de se realizar – e, com o passar do tempo, mais difíceis ainda de serem feitos com vigor. A colocação da câmera, o momento do corte, a inflexão dos atores, a construção de ritmo e climas – tudo aquilo que pode ser auto-suficiente em um cinema mais rarefeito (é possível fazer filmes calcados inteiramente na colocação da câmera; projetos de cinema dedicados exclusivamente à precisão do momento do corte, etc) é de um risco constante no cinema narrativo, pois cada plano – e cada pequeno elemento dentro dele – pode colocar a perder todo um fluxo de ilusão construído até ali.
A Última Estrada da Praia oscila, como um pêndulo desgovernado e inconsciente de seu próprio movimento, entre momentos de firmeza e vitalidade, e outros de facilidade e didatismo. Assim como percebemos uma atenção constante ao momento preciso do corte e à maneira de se filmar os planos gerais, temos sequências de diálogo (em um filme muito falado) bastante atabalhoadas, e uma interação entre os corpos que parece frequentemente travada pela necessidade de “representar” – como se a encarnação dos personagens pelos atores não estivesse introjetada o suficiente para que se possa agir e falar como eles falariam, naturalmente. Da mesma maneira, o cuidado na tessitura dos climas pela decupagem é muitas vezes sabotado por um uso de música incessante (há diversas sequências que melhorariam sensivelmente com a supressão completa da trilha musical), muitas vezes em uma construção de sentido que beira o escolar – mais óbvia, o aproveitamento do tema infantil de “Saiba”, de Arnaldo Antunes (em versão de Érika Machado), para cobrir um passeio pelo parque de diversões.
A relação com o filme (e, lembremos, o cinema narrativo se baseia principalmente na fé do embarque do espectador) é perturbada pela certeza crescente de que uma sequência de absoluta precisão pode ser sucedida por outra de encenação frouxa, e que cada momento de vitalidade pode logo ser atropelado por uma lógica de funcionalismo que não funciona. Ainda assim, é inevitável a sensação de que há, em A Última Estrada da Praia, uma pulsação constante – algo que nem sempre sentimos em outros filmes mais rigorosos e calculados. Não exatamente um ovni – é possível traçar paralelos com o cinema de Jorge Furtado (em seu melhor, aquele de Houve Uma Vez Dois Verões) e do carioca Bruno Vianna – A Última Estrada da Praia é, ainda assim, um filme raro. Raro pois, quando o que antes era uma quebra se torna uma nova convenção, é inevitável que uma convenção tenha, também, algo de quebra.