Publicado originalmente na Cinética em Setembro de 2009.
As aparências enganam
Quando Macário (Ricardo Trêpa) se apaixona pela rapariga loira (Luísa Villaça, interpretada por Catarina Wallenstein), ele se apaixona, na verdade, por uma imagem à janela. A loura se abana com um leque e, logo depois se coloca atrás de duas finas cortinas. Nesse momento, configura-se o mistério: não só a mulher, mas a mulher por trás de dois santos véus. É, também, o momento do milagre – como anunciam os sinos da igreja, que badalam para a moça. Temos, ali, o quadro que enquadra a janela, uma rapariga que se abana, duas camadas de cortina, e o som dos sinos. Dessa combinação, nasce a paixão. Esse plano – tão elaborado em suas camadas significantes – é um tanto estranho não só ao resto de Singularidades de uma Rapariga Loura, mas àquilo no que a obra de Manoel de Oliveira vem se transformando. Pois o diretor segue, no resto do filme, um processo de depuração cinematográfica que há muito norteia seu olhar, e que ele continua aprofundando a cada novo trabalho.
Embora seu primeiro cinema tenha sido marcado pelo diálogo forte com o clássico narrativo (pensemos, aqui, em Aniki Bobó), ao longo dos anos Oliveira tomou rumo contrário: onde havia a construção que tentava se dissimular dentro da fluidez narrativa, passou a existir a nudez absoluta do signo. Manoel de Oliveira – com suas composições frontais, as atuações estilizadas, os tempos internos que sempre isolam o signo em sua vontade de significar – se tornou uma espécie de escultor em negativo, onde a superfície bruta é escavada de seus excessos superficiais, até sobrar apenas a forma central, que estaria contida dentro dessa pedra matriz. O entorno da pedra, porém, é sempre mantido, para mostrar de onde surge o âmago significante. O signo flutua dentro do quadro, no centro simétrico que incorpora seu antes, e seu depois: Macário beija Luísa; há um corte para os pés da moça; em um momento, ela levanta um dos pés para trás – na representação imagética moderna que mais banalmente encarna a leveza de uma moça recebendo a paixão por um beijo. Há, porém, um tempo anterior e outro posterior que, juntos dentro do plano, isolam o gesto em sua artificialidade. O importante é, antes de mais nada, saber que aquele gesto quer significar algo.
Existe, portanto, uma estranheza avessa naquele plano da moça à janela, pois à medida que sua construção se torna mais elaborada, ele se distancia do registro que predomina no resto do filme. Ali, onde Manoel produz escancaradamente o mistério, ele nos alerta: há algo fascinante e extremamente errado por trás dessa imagem. Pois Singularidades de uma Rapariga Loura se constrói como um conto moral: Macário narra as desventuras de uma paixão que logo sabemos fracassada, a uma estranha que ele conhece em uma viagem de trem (Leonor Silveira). Essa narração recortará toda a narrativa, que a personagem de Leonor – a heroína de Manoel em tantos filmes – ouve apreensiva, trocando olhares com a câmera. Temos, nos planos que desenham essa estrutura, uma revelação da artificialidade da construção que aumentará a estranheza do encanto da rapariga à janela. A câmera olha para Leonor, que devolve seu olhar; estamos, sobretudo, a falar de cinema.
O que acontece de extraordinário nos 64 minutos (a depuração vem atingindo, também, a duração dos filmes de Oliveira) de Singularidades de uma Rapariga Loura é que sua nudez simbólica produz, em si, outros mistérios. Pois essa simplicidade – nunca simplista – é alcançada por uma inquietude extrema do diretor em relação à construção do plano, onde o mistério pode vir não pela sua transcrição encenada, mas pela maneira como o cinema se põe diante do mundo. Pode se chegar a isso pela supressão do contraplano (lembremos das cenas na portaria do prédio onde mora Luísa, onde as saídas de cena são marcadas apenas pela invasão da luz que vem de fora, quando a porta se abre), pela manipulação do som (o comentário que se torna a leitura do poema de Fernando Pessoa, por Luís Miguel Cintra, pelo simples descolamento diegético do som ambiente), pela ausência de certas imagens (os roubos que nunca vemos) ou mesmo pela distância entre a câmera e o ator (a frieza duríssima do plano final). São recursos de uma simplicidade extrema, que surpreendem justamente por isso: quando tudo parece desnudo, nasce, enfim, o mistério.
O cinema de Manoel de Oliveira é encantador por ser, em si, extremamente encantado com o poder das mais sedimentadas convenções da linguagem cinematográfica – o uso asfixiante do raccord nas sequências finais de Um Filme Falado (2003); a câmera subjetiva em Espelho Mágico (2005); as luzes que se apagam em Sempre Bela (2006); a maneira como as panorâmicas e o contra-plongeé simbolizam dois povos, e duas práticas imperialistas, em Cristovão Colombo (2007); etc. Ao limpar esses artifícios ao que eles têm de mais essencial – e por isso é natural que os filmes de Oliveira denotem tons “artificiais” – o diretor os restitui de uma vida que a redução à eficiência narrativa parecia ter retirado. Tal como Luísa e seus véus, a imagem também é capaz de se esconder por trás de camadas difusoras de sentido, onde as coincidências da construção podem ser, também, enganadoras. As imagens de Manoel não são em nada menos misteriosas, ou – por que não? – enganadoras. Mas se apresentam como imagens construídas por artifícios, condicionando o embarque do espectador à percepção de que ele crê em algo produzido para tal fim. Por isso a simplicidade é tão essencial; só assim, as imagens podem voltar a ser, enfim, o que ela realmente são.