Publicado originalmente na Cinética em Março de 2011.
Esse velho contemporâneo
Há não muito tempo, David Fincher, outrora um símbolo incontestável de um cinema histérico com as mazelas de seu espírito pós-moderno, chocou meio mundo com um surpreendente abraço ao classicismo (e não ao clássico, a bem dizer) em Zodíaco. No filme de 2007, o diretor trocava a ansiedade fragmentada em sua incapacidade de dizer tudo que lhe atravessava a garganta em o Clube da Luta (1999), e o malabarismo da câmera impossível de Quarto do Pânico (2002), por planos soberbamente enquadrados (bem escorados pela fotografia brilhante de Harris Savides), uma decupagem quase sempre precisa, e uma surpreendente sobriedade diante da impossibilidade de se determinar fins para uma história que negava qualquer possibilidade de conclusão. Nesse sentido, o acolhimento generalizado a este A Rede Social é facilmente justificável: muitos dos atributos que surgiam com frescor em Zodíaco reaparecem neste novo filme, fazendo com que O Curioso Caso de Benjamin Button (2008) possa ser rapidamente descartado como um mero acidente de percurso neste suposto processo de regeneração do diretor. Novamente, é notável o cuidado em esquadrinhar o espaço, o timing bastante preciso na revitalização da estrutura de diálogos em plano/contraplano, e um tratamento até certo ponto pessoal a um tema relevante para sua época – conexão que marca toda sua obra, incluindo Zodíaco.
A Rede Social é um filme bem articulado, de pleno domínio de linguagem – sim, a faculdade cinematográfica que há quase meio século Luc Moullet condenava como castradora a toda arte que mereça ser chamada como tal. Estranhos são os tempos em que a capacidade de articulação de uma frase minimamente coerente é algo tão raro que ela é imediatamente louvada, independente da frase formada. Pois em toda sua sedutora articulação, A Rede Social é o esvaziamento sofismático da techné em habilidade sem espírito, é o triunfo da ferramenta em uma relação um pouco mais do que puramente ingênua (e suficientemente mais maléfica) com o que o filme mostra. Por ser um showroom das habilidades de David Fincher como articulador, A Rede Social imprime um olhar determinado sobre sua época e sobre si mesmo. É justamente aí que suas fragilidades saltam à vista.
Em primeiro lugar, chama atenção a relação mimética com o universo abordado: se A Rede Social é sobre uma nova modalidade de comunicação, o filme fará todo esforço para incorporar suas características, mesmo que seja na tentativa de sabotá-las por dentro. Tal como uma conversa via Facebook, os diálogos são sequências inflamadas de oneliners potentes e cheios de si (em dado momento, Erika Albright, o paraíso perdido de Mark Zuckerberg encarnado por Rooney Mara, define o sintoma da vaidade do criador do Facebook: “é como se todo pensamento que você tem fosse tão interessante que merecesse ser publicado”), em frases encurtadas pelo limite de caracteres, em uma estrutura que vai instantaneamente do íntimo ao comunitário, do monólogo à polifonia, em uma atordoante torrente de eventos. É como se a tal rede social que dá título ao filme existisse apartada do resto do mundo e de comportamentos que já vigoram fora dela.
O Facebook é visto menos como uma possibilidade de comunicação e mais como um palco de inúmeros shows solo para uma platéia cega e surda, mas nunca muda – algo que pode ou não ser verdade, mas que evidencia Fincher como um sujeito que responsabiliza as ferramentas (mais uma vez, um cineasta da habilidade) pelo seu uso, como se elas o determinassem. Nesse sentido, não é nada irônico que os primórdios do filme mostrem pessoas que já se comportam à maneira que a ferramenta viria cristalizar (as redes sociais internas das universidades, que o site faz apenas ampliar), deixando claro que Fincher tem enorme dificuldade de perceber o uso de cada elemento em seu repertório de linguagem: é o espírito que demanda a ferramenta, não o contrário. Em sua tentativa de crítica desse caleidoscópico one man show, Fincher se expõe produto da mesma matéria que ele critica, não se incomodando em interromper o filme para se esmerar na decupagem de efeito de uma regata, mesmo que todo esforço seja sacrificado em uma cena que só se justifica como tentativa pateta de se fazer uma metáfora sobre a competição do mundo corporativo.
Essa inadequação entre matéria (algo bruto e que existe em si) e forma (algo indissociável à matéria, mas que é trabalhado pelo artista) leva a uma segunda fragilidade de A Rede Social, essa de ordem estrutural. Pois em toda sua aparente sofisticação, A Rede Social padece da necessidade de cumprir o tortuoso caminho das más biografias, em que a predestinação à redenção do sucesso aniquila qualquer possibilidade de acaso, reduzindo o mundo a um amontoado organizado de causas e efeitos. Não é à toa que Fincher usa os dois processos jurídicos como dispositivos para os arcos narrativos do filme: são eles que justificam a amarração do filme em seu tatibitati causal, para que uma prova levantada por um dos advogados possa puxar imediatamente um flashback da memória, e o filme possa ir de A a B sem o peso da culpa nas costas. Se temos uma cena de um rapaz perguntando a Mark Zuckerberg (Jesse Eisenberg) se uma determinada garota tem namorado, é apenas para mostrar o instante iluminado em que o gênio grita “eureka!”, como se cada frase solta ao relento fosse a semente instantânea da idéia de um bilhão de dólares, e toda história precisasse continuar na veracidade fria das cartelas finais que apontam para um presente inalcançável a biografias de tal natureza. Se vemos amarrações idênticas a essas em um filme como Bruna Surfistinha, de Marcus Baldini (qual a diferença entre a cena citada e aquela em que Bruna escolhe seu “sobrenome” de trabalho?), temos uma dimensão mais exata de sua primariedade.
Mas David Fincher não se contenta em falhar na aplicação de suas habilidades. Afinal, a ambição maior de seu cinema está em manter os dedos firmes no pulso da contemporaneidade, percebendo em Zuckerberg uma nova personagem, um novo milionário, um símbolo de uma nova ordem pessoal, social e econômica que o cinema precisa dar conta. É aí que A Rede Social se torna de fato uma declaração sobre aquilo que mostra, pois em todo seu esforço de caracterizar Zuckerberg como gênio excêntrico – o bilionário que vai trabalhar de sandálias e que dá maior importância ao seu próprio rancor do que às suas metas e realizações – e em toda a relação causal estabelecida pelas cenas dos tribunais, Fincher toma uma lado muito claro: o dos advogados. Pois para ele é mais importante perceber a ironia de um pé na bunda ter levado a uma empresa bilionária (levou?), e um convite para um clube reservado ter causado o expurgo de seu primeiríssimo sócio (causou?), do que compreender que é possível ter uma idéia bilionária enquanto se toma um porre com os amigos, por motivos tão banais quanto quaisquer outros.
Se há uma mudança imposta pela personagem de Zuckerberg, essa é uma mudança de postura – algo que o filme nunca está preparado para perceber, quanto menos para assimilar. Mas Fincher prefere olhar para esse novo milionário como um velho Charles Foster Kane, nem que para isso seja necessário lhe inventar sua própria Rosebud (novamente Erika Albright, que habita o prólogo e o epílogo do filme, reforçando o aspecto causal da jornada). David Fincher, artesão sofisticado e trapalhão, se vê diante de uma história com potencial para Superbad (2007), mas deseja fazer Cidadão Kane (1941). Nesse delírio de passado, acaba fazendo uma versão levemente mais íntegra de um Johnny & June (2005).