Publicado originalmente na Cinética em Dezembro de 2011.
Da imortalidade
“You get what anybody gets – you get a lifetime.”
Neil Gaiman, The Sandman
Um dos fenômenos mais marcantes da cultura recente, no qual o cinema tem papel chave, é a reabilitação artística e cultural dos super-heróis. Se artistas como Roy Lichtenstein foram aos arquétipos dos super-heróis para descontextualizá-los e, com isso, inverter o seu sentido, deslocando seu heroísmo para a pura banalidade da expressão estética, no final da década de 80 começa uma campanha cada vez mais agressiva da indústria do cinema para retomar essas figuras, por vezes com o sentido puramente reacionário que lhes era original (que a própria cultura dos quadrinhos tratou de subverter em sua maturidade), por outras deslocando suas potências para diferentes formas de reação. Dos Batman de Tim Burton à avalanche de franquias recentes, passando por Corpo Fechado (2000), Os Incríveis (2004), desvios nada industriais como A Alegria (2010), e todo um filão de adaptação de quadrinhos, os super-heróis moribundos saem lentamente dos pântanos da cultura e retomam um espaço privilegiado cuja legitimação não deixa de trazer contra-indicações que, pela ironia ou ingenuidade, precisam contar com a mea-culpa dos diretores mais inteligentes para chegarem a um Ratatouille.
Gus Van Sant, a despeito da improbabilidade da afirmação, é um diretor de filmes de super-heróis. Mas o é não exatamente pelo heroísmo individual à velha Hollywood de seus filmes mais convencionais, como Gênio Indomável (1991), Encontrando Forrester (2000) e Milk (2008), e sim por um tratamento de dramaturgia e da presença das personagens em cena que entoa as saturações distorcidas de Lichtenstein. Ao menos desde Gerry, Gus Van Sant vem criando um universo povoado por pequenos heróis cotidianos, seja pelo polvilhamento da cena com brasões e uniformes de absoluta iconicidade (a estrela no peito e a camisa na cabeça em Gerry; as personagens que, não à toa, viram videogame em Elefante; o touro sobre fundo amarelo e todas as outras inesquecíveis camisas de Elefante; o boné para trás e o skate embaixo do braço em Paranoid Park); por um tratamento muitas vezes arquetípico das personagens e de suas trajetórias (os nomes e caminhadas individuais de Elefante; a causalidade retrobiográfica em Milk, personagem que já nasce com nome de super-herói); situações que parecem demandar poderes sobrenaturais (o salto da pedra em Gerry; os skatistas voadores de Paranoid Park e de seu episódio em 8, filme curto em que os vôos são confrontados a estatísticas de morte; o rastejar torpe de Last Days); mas, principalmente, a sensação de personagens que vivem vidas duplas, com um lado oficial que convive com uma identidade secreta, algo já presente em Elefante (2003), intensificado em Paranoid Park (2007), e feito central na aventura nobre e trágica do herói em Milk. A diferença dos filmes de Gus Van Sant para um Superman está justamente em assumir o salto de James Joyce dos heróis da Odisséia para os homens comuns de Ulysses como uma fissura intransponível.
Inquietos, nesse sentido, não é tão diferente assim dos filmes mais recentes de Gus Van Sant. Novamente, temos aqui um herói maldito de identidade absolutamente marcada, como uma mistura de Rimbaud com Nosferatu, com os braços rígidos pendendo dos ombros feito cobras mortas em uma árvore. Ele é, ainda, aquele que sobreviveu à morte, que esteve do outro lado e voltou para contar. E, como fábula, não chega a ser surpreendente que toda a suposta morbidez de Inquietos seja apenas entrecortada por raros rostos de jovens mortos, e nenhuma morte de fato, todas elas confinadas às elipses de uma tristeza que não tem vez em um filme de incarregável leveza. Para os super-heróis, a única morte realmente marcante é a do trauma inicial – aqui, como em Batman, a morte dos pais. Se há um drama em Inquietos – tradução até certo ponto exata para o título original, mas que tira um duplo sentido precioso: aqueles que não descansam, quanto menos em paz – é justamente o de como se relacionar com mortais uma vez que a morte já foi contornada, e que o herói, sabe bem, jamais morrerá.
O drama em Inquietos não é, portanto, o de Annabel (Mia Wasikowa). A ela, coube ter o que todos temos: um tempo de vida – mais longo até do que o da maioria dos pássaros. O drama é todo do herói – daí sua aparência de dândi caído, condenado, como Rimbaud, à eterna juventude; e também as passagens anacrônicas dos jogos de esgrima, da amizade com o kamikaze fantasma, do trick or treat de gente grande, do hábito infrutífero de jogar pedras em um trem que não pára de avançar, como os ponteiros de um relógio – que sabe que não há descanso possível; que as coisas terão fim e ele não tem outra opção que não sobreviver a elas. É aquele que se inscreve na morte, riscando com giz o contorno do corpo no chão, para depois levantar e sair dele. E seguir assim, de enterro em enterro, até encontrar alguém para deitar ao seu lado e justificar a fixidez do contorno, em seu desejo não de vida e de movimento, mas de morte e paralisia.
Em sua crítica aqui na Cinética, Pedro Henrique Ferreira diz que as personagens de Inquietos apostam em um romance já fadado ao término. Qual romance não está, porém, naturalmente condenado a um dia acabar? Em Inquietos, o cinema é justamente a oferenda de morte, a possibilidade de congelar em um instante, em um fotograma, os momentos de plenitude, de eternizar essa certeza e de reapresentá-lo como aspiração possível ao espectador. Em três meses, é possível se fazer muitas coisas, mas não tudo. O que o cinema pode é justamente perceber a intensidade daquela relação, da entrega a esses momentos, e oferecer, em alguns poucos minutos, a possibilidade intangível de saltar de desejo a desejo, e permitir que eles possam ser vistos e revistos, de novo e de novo. E se, envoltos por esse turbilhão, as personagens perceberem que não sobrou tempo para aprender francês, há sempre a possibilidade de o filme eternizar todos esses momentos lhes cantando uma pequena chanson.