Publicado originalmente na Cinética em Outubro de 2012.
Cafetinagem social
Juliette Binoche faz o papel de Anne, uma jornalista da revista Elle que entrevista prostitutas para uma matéria. Pela pluralização do nome da revista que diferencia o título do filme, já fica patente o desejo de Elles: incluir na conta diária mulheres que “fogem à regra” da boa conduta da sociedade parisiense. É claro que, neste encontro, Anne vai perceber os limites do seu bom casamento burguês, aprendendo a se desnudar dos preconceitos de classe.
Há, porém, uma segunda camada, mais subterrânea (pois nada em Elles pode ser chamado de sutil) no jogo proposto por Malgorzata Szumowska. Quando Lola/Charlotte (Anaïs Demoustler) conta suas aventuras de vida para Anne, o filme retoma o velho registro dos cinejornais: em plano médio, a prostituta fala direto para a câmera, olhando para quem está do lado de cá da tela do cinema. Esse momento isolado, muito mais perto da cumplicidade de Oprah Winfrey do que do flerte com a objetiva nos créditos inicias de Mal dos Trópicos (2004), é apenas a inflamação putrefata de um sentimento que perpassa toda a projeção: trata-se de um filme com público-alvo. Não é apenas uma operação de ponto-de-vista – algo convencional em todo filme razoavelmente tradicional – mas sim uma equalização inequívoca entre personagem e espectador: Elles fala diretamente e exclusivamente às mulheres supostamente emancipadas, mas necessariamente frustradas no que desconhecem, como a repórter interpretada por Juliette Binoche. Pela exposição ao “diferente”, o filme chega de bandeira em punho e facão entre os dentes, pronto para degolar uma manada de índios inventados: Elles vem para nos salvar!
Ok, talvez precisemos de fato de salvação. Talvez seja hora de reconhecer que Errol Morris tinha razão, que o cinema pode ter uma função prática muito direta na sociedade, e que se todas as senhoras elegantes (lembrando: somos todos senhoras elegantes) saírem das salas aclimatizadas do circuito de arte decididas a deixar o sol de verão bater forte na pele e dar uma guinada na vida – nem que seja uma guinada para viver (e quem sabe até escrever) os contos eróticos dos suplementos das revistas masculinas – talvez o mundo amanheça mais leve no dia seguinte. Não é um projeto de todo indigno. Qualquer pessoa que já assistiu a Shortbus, de John Cameron Mitchell, em uma sessão lotada tem a chance de perceber o quanto a maneira de encenar o sexo ali (no caso, absolutamente explícito, mas não é exatamente esse o único ponto em questão) pode entortar alguns velhos parafusos na cabeças das pessoas, parafusos que talvez impediam a máquina de girar. Os problemas de Elles, porém, não estão ligados somente à ingenuidade estreita de suas intenções. A questão, no fim das contas, é que o novo mundo prometido pelo filme não é em nada diferente do velho mundo que ele vem pra derrubar.
Parte do que faz Elles ser um filme particularmente nocivo é o fato de Malgorzata Szumowska ter certo domínio da linguagem audiovisual, fazendo escola com os melhores marqueteiros. Há uma definição muito clara do ambiente habitado por Anne, da cozinha impecável e o apartamento clean ao domínio de todas as medalhas que lhe garantem espaço em seu estrato social – a alta gastronomia, a música erudita, a haute couture. Há, também, todo um cuidado em criar equivalentes simbólicos para os problemas que os personagens silenciam em seu interior, como melhor representa a geladeira cheia que, misteriosamente, Anne não consegue fechar. Ainda assim, todas essas soluções são inscritas em um nível muito rasteiro da linguagem – “a linguagem é a arte fracassada”, definia Luc Moullet – guardadas na primeira camada sob as aparências, como se esconde um brinquedo de cachorro sob uma almofada.
Já no limiar da crise conjugal, o marido de Anne chega em casa com uma nova furadeira. “É o último modelo”, ele diz. “Uma nova furadeira?”, ela retruca. “Qual foi a última vez que você furou alguma coisa?”. Diálogos como esse estão ali apenas como manobra brechtiana (“É preciso que os assuntos de couve-flor de Arturo Ui sejam mais do que assuntos de couve-flor, que eles sejam a alegoria transparente da realidade econômica que sustenta o poder nazista. Mas também é preciso, ao inverso, que sejam apenas assuntos de couve-flor, uma realidade estúpida, insensata, que deve suscitar aquele sentimento de absurdo que nutre ao mesmo tempo o puro prazer lúdico e o sentimento do intolerável”, escreveu Jacques Rancière em A Política da Arte), como atestado de sofisticação que até o espectador mais sonolento poderá abocanhar, para em seguida receber um afago na cabeça como recompensa. Elles mira o tempo todo esse afago.
Para uma dimensão do alastramento do problema, talvez o melhor seja ir direto aos momentos explícitos do filme: Elles tem uma cena de masturbação feminina razoavelmente frontal, uma mijada nas mamas de uma das prostitutas, e até um ato de sodomia com uma garrafa de espumante. É interessante reparar, porém, que todo o desejo de ser explícito é acompanhado pela luz extremamente difusa e elegante dos “pornôs” softcore de TV aberta – aquela capaz de maquiar qualquer estria, celulite ou imperfeição – enquadradas sempre com providencial distância, de preferência interpelada por algum corpo, moldura ou objeto que acentue o lugar seguro reservado ao espectador. Não estamos, portanto, nem na inevitabilidade do visível, como no cinema de Catherine Breillat, nem na sua negação por princípio, como em Jeanne Dielman, 23 Quai du Commerce, 1080 Bruxelles (1975), obra-prima de Chantal Akerman. Malgorzata Szumowska ambiciona o meio do caminho, o lugar do senso comum.
Se o filme tenta provocar um curto-circuito criando cenas de outras interações físicas entre as pessoas, basta ver a diferença na maneira de filmar os encontros das prostitutas com os clientes e a massagem que Anne faz nos pés do pai doente, digna da luz do sol e da aproximação de um close-up. Mesmo quando a regra parece ser invertida, a esperança dura pouco: Lola faz sexo com um homem, e a proximidade da câmera faz crer se tratar de seu namorado – de quem, àquela altura, só ouvimos falar. Em seguida, o homem paga o programa e vai embora, e Lola torna-se novamente Charlotte e vai encontrar seu namorado de verdade. A diretora tem plena consciência da capacidade subversiva da linguagem, mas não levará muito tempo até percebermos que o relacionamento de Charlotte ficou abalado com aquela transa contratada, e que a ambiguidade da cena era, mais uma vez, apenas questão de ponto de vista. O filme se reserva sempre o direito de não se posicionar.
Esse tipo de associação por contraste é buscado o tempo todo, na esperança de um curto-circuito. O problema é que a via, aqui, nunca é de mão dupla. Durante as entrevistas, Anne será confrontada diversas vezes com seu próprio preconceito, por inversões de eixo propostas pelas próprias entrevistadoras. “O pior de tudo é o cheiro que não sai do corpo depois”, diz Lola/Charlotte, após o filme nos mostrar um encontro dela com um de seus clientes. Basta Anne concordar, nauseada pelo aroma da submissão, para a prostituta dizer que estava falando é do cheio dos conjuntos habitacionais em que cresceu. O filme faz um inventário dessas inversões, assim como faz um inventário das perversões masculinas em seus pequenos shows, e a maneira mecânica e unilateral que elas acontecem tira qualquer chance de efetividade. Anne está ali para aprender com aquelas moças… já as prostitutas, elas não têm nada receber da troca. Se oferecem com generosidade ao trabalho bem pago de se sacrificar como exemplo.