Publicado originalmente na Cinética em Janeiro de 2010.
Montagem de afecções
Esperando Telê é um filme curioso por tudo que ele se torna, mesmo que à revelia de seu projeto inicial. A princípio, talvez pudéssemos esperar um documentário mais convencional sobre uma personagem (Telê Santana) e seu universo (o futebol); mas, como indica o título, essa personagem não chega, e esse filme também não. O que sobra é um estilhaçamento completo dessa figura e desse mundo (não é disparate algum pensar em I’m Not There, de Todd Haynes), que resulta em um filme de época: Esperando Telê é um filme sobre o Brasil em 1993-1994, perpassado pelo futebol – pois não poderia ser diferente – mas não apenas debitário dele.
Sobrevivem, nas entrelinhas, o momento político, as mudanças de mentalidade e de comportamento, a relação com as imagens, as roupas, as mudanças monetárias; e é justamente daí que sai o filme mais interessante. Isso se dá, não exatamente pela implicação natural de todo filme ser um documento de época, mas sim porque Rubens Rewald e Tales Ab’Sáber retomam esse material com a consciência desse distanciamento, e percebem que, na ausência de Telê, existe um mundo que gira ao seu redor – que é circunscrito por ele e, ao mesmo tempo, determina a importância de seus gestos. Se Telê aparece, pelas imagens de televisão, como um último bastião confiável da ética no futebol, é inevitável que tal impressão reflita a era Collor, a descrença generalizada, e uma eventual mudança do futebol de fé (Telê) para a administração funcional e fria da era Parreira. Esperando Telê flagra o momento em que o Brasil começa a querer se profissionalizar.
Por isso mesmo, é inevitável que o subtexto político do filme esteja justamente em sua desigualdade: em época de busca pela profissionalização, Esperando Telê é um monstro torto e mal ajambrado. Há muito de político nessa ação, embora nem sempre ela funcione a favor da fruição – há longos clipes musicais de imagens frequentemente inúteis, e desvios tão brutais (toda a parte sobre Pelé, por exemplo) que por vezes parecem realmente perdidos dentro de um outro filme. Mas há algo louvável nessa desobediência que usa uma personagem notável para falar tanto da inabilidade de se chegar até ela (lembremos, mais uma vez, da obra de Todd Haynes), quanto da percepção de que ela não pode existir fora de seu momento histórico, com seus impulsos congelados, pairando sobre um tempo que não mais existe.
A montagem de Esperando Telê é uma montagem de afecções no sentido literal da palavra: os sentidos se contaminam e se transformam, se espalham como uma doença não-diagnosticável, destruindo o que restava do sujeito, mas dando origem a um novo organismo. Esse processo é mais aleatório do que sistemático – o que fica claro na maneira como os diretores preservam a estrutura de plano e contraplano dos programas de televisão usados no filme, assimilando suas construções de personagens (os closes de Parreira como vilão são extraordinários) quando elas parecem suficientemente fortes como documentos a serem reavivados, mas digressionando sempre que a espiral começa a girar em falso. Em Esperando Telê, o que fica de mais marcante é justamente esse abraço torto do não-convencional, esse filme que realmente parece poder mudar de rumo e olhar a qualquer momento, mas que conserva algo de autêntico, de fiel ao espírito do filme e ao olhar dos diretores nessa autofagia.