Publicado originalmente na Cinética em Novembro de 2010.
Em transformação
O Céu sobre os Ombros se alinha a Morro do Céu (2009), de Gustavo Spolidoro, e Avenida Brasília Formosa (2010), de Gabriel Mascaro, em uma mesma estratégia, surpreendentemente recorrente para filmes separados por tão pouco tempo: partir de um material documental para uma montagem que adere às convenções da ficção, superando as questões do próprio documentário ao ficcionalizar as personagens. O específico do documentário – essencialmente uma questão ética, de quem lida com pessoas que seguirão com suas vidas fora do filme – é trocado por uma apropriação que tenta tirar deste contato com o real apenas seu impulso de autenticidade.
Três personagens são acompanhados pela câmera e reunidos em uma montagem aqui realmente paralela – em trajetórias que nunca se cruzam -, em uma escolha que se assume absolutamente deliberada: não há nada que aparentemente conecte as três protagonistas a não ser o olhar do próprio filme e seu contato com a mesma câmera. A similaridade entre os três filmes não pára por aí: todos eles são norteados por uma estratégia de filmagem em tableaux, com enquadramentos rigorosos e fotografia de expressiva plasticidade (aqui, de Ivo Lopes Araújo, mais uma vez surpreendente em suas escolhas de cor e luz), investindo em uma narrativa que é menos calcada em sua própria linearidade, e mais no fluxo e orquestração dos tempos e deslocamentos internos de cada cena. Em todos os casos, o limite dos filmes é o limite da proposta: como encontrar uma estrutura de dramaturgia onde ela é imprevista? É possível articular esses sentidos sem violentar a autenticidade da experiência? – a propósito, uma certa aleatoriedade que servia como primeiro ponto de atração do filme por aquelas personagens e situações. O Céu sobre os Ombros, nesse sentido, toma uma decisão bastante feliz, que tira do acaso a responsabilidade pela dramaturgia: é um filme não somente sobre determinados personagens, mas uma afirmação de um ethos em relação ao conceito de “personagem” cinematográfico.
Pois o que é surpreendente no filme de Sérgio Borges é a maneira como a instalação no real é constantemente surpreendida por personagens que se desdobram incessantemente em cena (e, não à toa, são pessoas que mudaram seus próprios nomes), levando a encenação para lugares que antes não pareciam possíveis, entortando nossa percepção sempre que achamos que já os conhecemos. É isso que há de comum aos três protagonistas do filme: sua capacidade não exatamente de reinvenção para a câmera, mas de revelar a incapacidade do cinema de captá-los em toda sua multiplicidade, de tipificá-los para um roteiro. A busca no real se justifica justamente nessa extrapolação da vida em relação ao cinema: um travesti se revela um estudioso sobre sua própria prostituição; um monge Hare Krishna que é skatista, pichador de muro e devoto do Atlético Mineiro; uma figura pictórica de um homem que anda pela casa vestindo apenas um par de meias cor-de-rosa se revela um escritor e pai de família; etc, etc etc.
Se Morro do Céu e Avenida Brasília Formosa esbarravam nas limitações de seu próprio projeto (em um caso, filmando a busca por um tema; no outro, provocando-o em conexões que o mundo não oferecia), O Céu sobre os Ombros avança não só ao tematizar essas próprias limitações, mas também ao promover um encontro um tanto improvável entre o cinema de modulações que vemos em Adeus ao Sul (1996), de Hou Hsiao-hsien, e Ossos (1997), de Pedro Costa (filme aqui muito evocado pela plasticidade pálida de seus tons, embora eles sejam sensivelmente mais quentes do que a palheta de cinzas do filme de Pedro Costa) com o ethos realizador de Eduardo Coutinho: não há ser humano que se permita reduzir aos limites de uma personagem. É justo, portanto, que as personagens e o filme expressem isso, apontando sempre para fora, esbarrando nos limites inventados do quadro, dos cortes e da duração – por vezes com resultados um tanto frustrantes para um filme de dramaturgia, especialmente claro na ausência de um final: O Céu sobre os Ombros não acaba; pára.
Neste encontro entre o controle e o descontrole, O Céu sobre os Ombros faz diversas operações de re-significação que destacam essa relação, seja por meio da montagem ou do uso da música – especialmente forte quando salta da diegese para a não-diegese, no plano em que Murari Krishna anda de skate pelas ruas da cidade. Em um dos momentos mais bonitos do filme, uma panorâmica por uma paisagem aos poucos a re-situa como um papel de parede no serviço de atendimento onde trabalha Murari Krishna, que vemos sentado frente ao falso parque. Em um único plano, Sérgio Borges realiza o jogo de dentro/fora que Tiago Mata Machado expõe como conceito em Os Residentes (2010), e que isso aconteça no contato com um cenário real (e não construído para o filme) só reafirma a força do procedimento.