Publicado originalmente na Cinética em Setembro de 2009.
Um manco retorno
Para se chegar de fato a Anticristo, é preciso atravessar uma espessa camada de fumaça que o separa do espectador. Esse obstáculo não vem do filme, mas sim de todo o esforço midiático feito em torno dele por Lars von Trier – mas também, e mais lamentavelmente, por parte considerável da crítica de cinema mundial. Não é novidade alguma que Trier sempre foi um marqueteiro além (e, em seus piores momentos, antes) de um diretor de cinema, e que seu discurso sempre buscou embaralhar a recepção de seus filmes. Mas Anticristo parece marcar o triste momento em que houve, também, um esforço de parte da crítica – e não só da imprensa produtora de lides – em não travar qualquer relação com os diversos procedimentos usados pelo diretor na construção do filme. Existe, nesse ato, um texto político muito mais claro do que sua intenção, pois a recusa sistematizada acaba servindo mais à polêmica do que ao cinema.
Sim, Anticristo é um filme. Em toda sua deformidade acidental, talvez seja o filme mais íntegro de Lars von Trier desde Dançando no Escuro (2000) – o que é, em si, mais uma questão de justeza do que de defesa. Em Ondas do Destino, há uma cena em que Bess (Emily Watson) interrompe um sermão religioso onde se pregava o amor à palavra de Deus: “Não se pode amar uma palavra. Só se pode amar pessoas”, ela dizia. Desde Dogville (2003), Lars von Trier deixou de fazer filmes sobre pessoas, e passou a fazer filmes sobre palavras. A metalinguagem e a exposição auto-reflexiva atingiu tais níveis de epidermia que, por vezes, neutralizavam qualquer engajamento possível com o objeto artístico. Esse cinismo está presente tanto no joguete com Jorgen Leth em As Cinco Obstruções (2003), quanto na inocuidade dos auto-enquadramentos de O Grande Chefe (2006). Em Anticristo, não. Pois, passadas as questões não-artísticas (que, claro, influenciam a visão), o filme marca o retorno da crença de Lars von Trier nas imagens. Os planos em que o pênis de William Dafoe ejacula sangue, ou em que Charlotte Gainsbourg corta o próprio clitoris, podem ser tudo, menos gratuitos. Existe, na iconografia de Anticristo, um desejo de significação que é bastante claro, e reduzi-lo a mero instrumento de marketing é julgá-lo pelos motivos errados. As fragilidades de Anticristo são de outra ordem, e é preciso se relacionar com elas dentro de suas intenções.
Desde a primeiríssima sequência, é notória a vontade de Trier em usar a câmera para produzir significados e construir um universo simbólico para além do oportunismo dos choques. Do preto e branco ao hiper-slow motion obsceno do pior de um Zack Snyder, o diretor começa o filme criando um universo de moral fabular onde tudo é arquetípico e, ao contrário do que diz a raposa na floresta, haverá pouquíssimo espaço para o caos. Em dado momento, a personagem de Willem Dafoe sugere à esposa um exercício de role playing; é esse o jogo fundamental do cinema de Trier e, nesse sentido, Anticristo só se distancia de seus melhores momentos por ser absolutamente manco. Cada ícone terá um significado muito claro dentro daquele universo, mas o problema está menos na clareza, e mais na falta de habilidade de Lars von Trier em construir essa realidade interna com maior inteireza. Mais do que um evento não-cinematográfico, Anticristo é um filme perdido entre suas próprias vontades.
Daí que a tentativa mais fracassada de Anticristo seja a de aproximação com o gênero. Pois Lars von Trier sempre teve uma das noções de timing (ou falta de) mais esdrúxulas do cinema contemporâneo – algo que rendia resultados interessantes em Os Idiotas (1998) ou Ondas do Destino (1996), mas que é fratura irremendável quando ele dialoga com gêneros que dependem do tempo (aqui, o horror; em O Grande Chefe, a comédia). As cenas de maior agonia física têm sentido alegórico tão claro (das analogias sexuais ao peso que a mulher prende à perna do marido, por exemplo) que se apresentam mais como engrenagens de significação do que como potência estética. Até mesmo os momentos de fantasmagoria mais inquieta (as gélidas caminhadas em step printing) são acompanhados por drones na banda de som – comentário que os aprisiona em um registro de gênero castrador por sua banalidade. Lars von Trier, que sempre foi tão econômico em seus tratamentos sonoros, escolhe o caminho mais redutor para produzir sentidos que já estavam presentes nas imagens. Com isso, acaba os afastando pela reiteração.
Existem, porém, momentos em que ele escolhe caminhos mais férteis, e é justamente por eles que Anticristo restaura algum interesse pelos trabalhos vindouros do cineasta. Antes de irem à floresta, a relação entre Willem Dafoe e Charlotte Gainsbourg é filmada com um cuidado que há muito não surgia nos filmes de Trier. A combinação do formato cinemascope com a supressão do plano/contra-plano é mais eloquente do que toda a parte passada na floresta: em cada movimento que a câmera faz de um rosto ao outro, nos tornamos conscientes da distância que os separa – ela, com o rosto que salta, órfão, da escuridão; ele, com seu entorno sempre visível. Esses momentos são fortes pois, embora Lars von Trier sempre tenha se revelado como o senhor manipulador de seus universos (lembremos da câmera subjetiva de Deus, no último plano de Ondas do Destino), a força deles é proporcional a o quanto o diretor consegue fazer essas guias parecerem orgânicas. Daí que os drones se tornem ainda mais pálidos se comparados às bolotas de carvalho que caem sobre o telhado da casa da floresta – francamente angustiantes pelo barulho que produzem, e por toda a carga simbólica que carregam enquanto objeto. São detalhes pequenos que podem se diluir ao longo do filme, mas que revelam uma preocupação – diria quase uma correção de rumos – que não víamos no cinema de Lars von Trier há quase uma década.
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