Skip to content

I Remember (Eu me Lembro, 2005), Edgard Navarro

Publicado originalmente na Cinética em Maio de 2012.

Eu me Lembro  é um filme auto-biográfico – e por ser um filme auto-biográfico, ele é inevitavelmente sobre cinema. Não à toa, as primeiras imagens do filme são documentos cinematográficos de época: o passado de Navarro chega a nós com os riscos, o preto e branco e o batismo de um tempo perdido, irrecuperável, congelado nos fotogramas que, lentamente, viram vinagre. É uma espécie de Vozes Distantes (1988) baiano, trocando as canções de pub e a castração do extra-campo de Terence Davies pelos cantos folclóricos, a loucura e a explosão de sexualidade típicas de Edgard Navarro.
 
Sobre o cinema, eu disse: em dado momento da infância, Guiga – o alter-ego do diretor – olha por uma janela que garante uma pequena entrada de luz difusa na escada de sua casa. Do lado de fora, uma criada canta enquanto lava os lençóis manchados pelo mijo das crianças, o medo das crianças, a pequenez das crianças diante do sonho noturno. Neste primeiro momento, essa imagem – esse outro lado – é reservado apenas para nós. O vidro da janela é crespo, ao mesmo tempo transparente e opaco, decompondo o mundo em pequenas gotas translúcidas, feito os átomos de Seurat. Para Guiga, há apenas o canto da sereia, vindo do outro lado, aquele mosaico luminoso de pontos coloridos, e a voz de Cicinha, ao seu lado: “Ali é o céu. É lá que mora Deus”.

A analogia entre o cinema e a janela já foi inventada e desinventada diversas vezes pela teoria e a crítica cinematográfica. Diversos cineastas fizeram uso da aproximação, de Antonioni a Chantal Akerman, passando inclusive pelo já mencionado Terence Davies. Em Eu me Lembro, constantemente a câmera e as personagens se aproximam dos vários vidros que separam os cômodos  da casa, condicionando a observação à sensação dupla de proximidade e distância criada pelas janelas. Mas esta janela – a janela da casa de Deus – é especial justamente pela qualidade porosa do vidro, que dá a impressão de mostrar e esconder a um só tempo. Ela é menos uma janela, e mais um prisma – para usar a ainda bela definição de Rudolf Arnheim – que distorce, reconfigura e infla de mistério o mundo como ele é.    

Certo dia, basta um estilingue mal usado para a janela aparecer quebrada. “O que havia do outro lado não era céu coisa nenhuma”, diz Navarro, em voz over. “Era apenas o quintal de Dona Elvira. Lá estava ela estendendo roupa na corda. “Aquela foi minha primeira decepção religiosa”. O corte seguinte não poderia ser mais eloquente: Guiga vai ao cinema pela primeira vez e assiste a O Rei dos Reis, bastião do classicismo de Cecil B. DeMille – a narração em voz over de Navarro, porém, não diz o nome do filme; chama-o apenas, e ontologicamente, de a vida de cristo.

Não se pode dizer que o cinema de Edgard Navarro é católico, sequer exatamente cristão. Como baiano que carrega consigo sua origem, o sincretismo – e não só o religioso – é uma questão de identidade. A recorrência de Jesus Cristo e de outras imagens católicas é do reino dos arquétipos, estratégia constante de construção de personagens na obra do diretor. Mas essas duas sequências são ilustrativas da procura de Navarro por seu “cinema transcedental”, como diz o próprio no curta-manifesto Na Bahia Ninguém Fica em Pé, realizado por ele, José Araripe Jr e Pola Ribeiro, em 1980. São ilustrativas pois denotam a atitude do realizador em sua busca pela transcendência, da qual o cinema – como a analogia do barco que fecha O Papel das Flores, de 1999 – é apenas a ferramenta mais adequada.

Em Tiradentes, quando escrevi rapidamente sobre o belo atropelo chamado O Homem que Não Dormia, disse que Navarro talvez fosse nosso maior cineasta clássico em atividade. Aparte a menção direta e muito significativa a Cecil B. DeMille em Eu me Lembro, a sequência da janela é um pequeno tratado dessa impressão. Em primeiro lugar, há o mundo – o quintal de Dona Elvira, absolutamente prosaico em sua existência cotidiana. Filtrado pela irregularidade mágica e misteriosa do prisma da janela – pela lente da câmera – ele se torna o céu, imagem recorrente nos filmes de Edgard Navarro, e para onde a câmera ascenderá ao final de Eu me Lembro. O cinema vem como possibilidade de redenção justamente após esse vidro – esse primeiro simulacro de cinema, essa primeira caverna – ser quebrado. A ingenuidade do espectador do mundo (da criança) estilhaça com a vidraça. Do outro lado, há apenas o mundo.

O ofício do diretor é justamente o de apontar a câmera – esse outro prisma –, esse olhar que registra as coisas nos fundos da cabeça (novamente citando Navarro em Na Bahia Ninguém Fica em Pé) para a existência prosaica das coisas, e extrair, dali, uma possibilidade de transcendência. Com as condições ideais – o tempo, o enquadramento, a luz, os atores – é o que basta para que, desse cotidiano, brote a sensação de sagrado, como os cogumelos surgem nos excrementos das vacas em Alice no País das Mil Novilhas (1976), seu primeiro curta. De lá para O Homem que Não Dormia, o cinema de Navarro continua fundamentalmente o mesmo. Ou ao menos seu objetivo – sua ilha do outro lado da água – permanece igual. O que muda é justamente o cuidado com esse vidro, esse trabalho progressivo e cada vez mais concentrado de um Sísifo que encarna o vidreiro dedicado, com a esperança de que, se bem feito ao extremo, o vidro possa de fato transformar a realidade, mesmo depois que uma pedra de estilingue mal mirado – o acaso, enfim – o atravessar.

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *