Publicado originalmente na Cinética em Outubro de 2008.
Espetáculo de excessos
Ao lado de Gomorra, de Matteo Garrone, Il Divo saiu do último Festival de Cannes carregando o peso crítico de representante do “renascimento do cinema italiano”. Vistos os filmes, é inevitável a problematização da eleição (ignorando, para render a discussão, que toda eleição do tipo já é deveras problemática). Em primeiro lugar, porque algo que nunca morreu não precisar renascer: se o cinema italiano já nos deu Rosselini, Antonioni, Visconti, Fellini e tantos outros inestimáveis artistas, hoje segue relevante com nomes como Nanni Moretti, Emanuele Crialese e Kim Rossi Stuart sempre rondando as listas dos filmes mais interessantes de seus anos. Em segundo, porque Gomorra e, principalmente, Il Divo usam uma estratégia de cinema já bastante familiar no panorama mundial atual, mas de resultados estéticos ainda bastante pouco convincentes: a de uma certa estética transnacional que uniria sujeitos como Guy Ritchie, Fernando Meirelles, Alejandro Gonzales Iñarritú e Park Chan-wook. Embora partam, muitas vezes, de temas locais, a maneira de se aproximar desses filmes não é local ou tampouco estrangeira: é filha de lugar nenhum.
Não existe, portanto, nesse cinema de aeroporto um diálogo com a territorialidade geográfica, cultural e imaginária local (Miguel Gomes, Lucrecia Martel, Jia Zhang-ke, Apichatpong Weerasethakul) ou mesmo com a saudável desterritorialidade cinematográfica que serve como combustível-matriz para alguns dos cineastas mais interessantes da atualidade (Wong Kar-wai, José Luis Guerín, Johnnie To, Hong Sang-soo). Existe, sim, um desejo agudo de aproximação com um certo repertório do cinema contemporâneo norte-americano, mas que reflete a ingenuidade de crer que os signos desse cinema seriam obra em domínio público, como se a relação estabelecida com eles estivesse partindo de uma totalidade de Cinema (com c maiúsculo), sem nunca se dar conta de como esse universo é fascinante justamente por ser restrito e particular – explicando, por exemplo, a ausência de realizadores americanos nas duas pequenas listas acima: os EUA são o lugar onde a desterritorialização é, sobretudo, uma questão de identidade local.
É difícil, porém, não ficar impressionado com a destreza com que Paolo Sorrentino transita entre suas influências, do flerte com o universo dos quadrinhos de um Robert Rodriguez, à ironia caricatural dos irmãos Coen; do fluxo encadeante de imagens de um Todd Haynes, à fragmentação do quadro de Brian De Palma. E, para manter as coisas razoavelmente perto de casa, há, claro, um desejo escancarado de se tornar Martin Scorsese. A questão mais problemática de Il Divo não é, porém, fazer uso desse repertório; mas sim passear por essas cascas de cinema sem nunca atentar para o seu conteúdo, sua substância central. Por isso, às vezes um mesmo recurso pode ser usado de maneira surpreendente, em um momento, e nefasta, em sequência – basta pensarmos no uso das canções à Tarantino, que constrói tanto minutos mais vitais, quanto aberrações como “Da Da Da”, da banda alemã Trio, nos créditos finais.
O resultado é de uma esquizofrenia tão manca quanto fascinante, pois nesse desfile por galerias de tipos cinematográficos, Sorrentino chega, talvez, ao feito mais surpreendente de Il Divo: reduzir a realização cinematográfica às suas mínimas partes, gerando, assim, uma espécie de novo cinema de atrações à Eisenstein. Todo plano – sempre curtíssimo, a não ser que se torne um plano-sequência, claro – é cuidadosamente pensado como pulsão visual; todo movimento de câmera é certeiro; toda fala é cavada nas pedras do definitivo. A questão macro é que não estamos diante de um filme que se ambiciona como experiência de atrações, mas sim de um longa-metragem assombrado por uma monumental e imaginária obrigação narrativa. Assim, não deve ser bom sinal que Il Divo seja um filme muito mais interessante quando desistimos de ler as legendas. É bastante sintomática, portanto, a maneira como Sorrentino começa e encerra seu filme: uma cartela de texto informa dados “relevantes” da história que teriam ficado de fora do tempo regulamentar de Il Divo.
Estamos diante de um projeto de cinema tragicamente partido entre o deleite estético e a obrigação inventada para com a história oficial, a necessidade de informar o espectador. Não há, em momento algum, um encontro entre a narrativa e as imagens; são dois caminhos que correm, do início ao fim, por berrantes caminhos paralelos. Para Sorrentino, não basta escolher um ou outro; seu cinema quer ser tudo, e, dentro dessa totalidade, ainda quer ser o tudo dentro das pequenas partes: todo plano deve ser um grande plano; toda fala deve ser uma grande fala – seja pelo conteúdo, seja pela forma. É o cinema da overdose de dós de peito, sem perceber que, quando todos os elementos gritam pela atenção do espectador, o tiro engasga e explode a cabeça do atirador: a exigência crônica pela atenção leva, ao fim, à desatenção completa. “Eu não acredito no acaso. Eu acredito na vontade de Deus”. É esse o bordão de Giulio Andreotti (Toni Servillo), e é a ele que responde a lógica maior de Il Divo. Em mundo controlado pelo diretor, não resta dúvidas: o Deus cuja vontade é suprema é, ao e ao cabo, o próprio Paolo Sorrentino. Ao espectador, resta uma cadeira bem distante da tela, de onde ele pode observar esse magnífico robô em todo o seu esplêndido e estúpido movimento