Publicado originalmente na Cinética em Outubro de 2008.
Ao Amor
É bastante significativo que, além de Aquiles e a Tartaruga, o Festival do Rio de 2008 tenha também programado Glória ao Cineasta (2007) – filme anterior de Takeshi Kitano, exibido na Mostra de São Paulo do ano passado. Muito embora não seja exatamente uma continuação narrativa do filme anterior, Aquiles e a Tartaruga é a terceira parte de uma particularíssima trilogia de auto-implosão artística, iniciada em 2006 com Takeshis’ (ainda lamentavelmente inédito no Brasil, especialmente por ser o melhor dos três). A necessidade de se estar minimamente familizariado com este processo é definidora para este novo filme, pois sua inquietação maior – em especial de sua primeira meia hora – é como decorrência de um processo.
Estamos, aparentemente, diante do trabalho mais clássico e comedido de Takeshi Kitano, desde a sobriedade trágica de Dolls (2002). Acompanhamos Machiso, filho de um milionário mecenas, que desde criança sonha (ou, como bem diz o filme, foi induzido a sonhar) se tornar um grande pintor. Nas paredes da casa de seu pai, ou em seu pequeno ateliê, as telas com traços infantis de Takeshi Kitano (que já apareciam pontualmente em alguns de seus filmes) contrastam com a decoração bem cuidada, com ambientes tomados de antiguidades e papéis-de-parede com gravuras à art noveau. Para os que acompanharam sua jornada desenfreada pelo túnel da criação que eram Takeshis’ e Glória ao Cineasta, será possível acreditar que Takeshi Kitano tenha saído, ao fim, ileso de todo aquele processo? Seria ele capaz de retornar à dramaturgia clássica sem um traço de ironia; retomando todas as convenções implodidas e expostas nos filmes anteriores sem perceber que, dela, só restaram os cacos? Existiria recuperação possível depois de tão intensa desconstrução artística?
Aos poucos, as tintas do melodrama vão secando, e começamos a perceber os borrões que formam as imagens: apesar do aparente apego ao figurativo, estamos, de fato, diante do terceiro manifesto de loucura de Takeshi Kitano. A grande diferença é que enquanto Takeshis’ e Glória ao Cineasta eram filmes sobre a criação de filmes que traziam para a própria imagem a sua inquietação – dando a impressão de que Kitano talvez nunca mais conseguisse sair de seu 8 ½ (1963) – Aquiles e a Tartaruga traz ao plano narrativo a uma dúvida muito anterior: por que produzir arte? Não seria a insistência artística um mero ato de teimosia de alguém que, um dia, fora convencido de que possuía um dom; um sonho que sequer era seu? Se antes era a imagem quem questionava, agora Kitano retornará ao discurso pré-imagético como questão. À criação, enfim.
Percebido isso, Aquiles e a Tartaruga acaba se revelando o mais metalinguístico de todos os filmes de Takeshi Kitano. Basicamente por a trajetória adulta de Machiso (que, claro, será interpretado pelo próprio diretor) mimetizar a trajetória de Kitano como realizador, modificando seu projeto artístico de acordo com a legitimação crítica (classe encarnada, aqui, por um dono de galeria-crítico de arte). Quando as suas telas de infância são roubadas e revendidas como produtos de uma nova tendência da arte institucionalizada, com os traços básicos do artista destacados nas paredes das mansões e das galerias, fica uma inevitável pergunta: não estaria, com isso, Kitano fazendo um comentário sobre sua própria posição enquanto produtor de imagens? Fruto de um artista ligado, sobretudo, à produção de arte popular no Japão (o primeiro ofício de Takeshi Kitano não é o de diretor, mas sim o de comediante, sob a alcunha de Beat Takeshi), não seria Aquiles e a Tartaruga a manifestação de um incômodo diante de sua posição como realizador de grife; como artista restrito à crítica e ao público dos festivais, com produções vendidas para olhos desinformados que compram apenas a retórica dos carimbos que aprovam sua relevância artística no mundo?
Em um primeiro momento, o impulso freado é o da perfeição técnica. “Queremos algo com maior ímpeto criativo. Você deveria estudar um pouco de história da arte”, diz o crítico, diante de um quadro figurativo impecavelmente detalhista (pintura para restaurantes e consultórios, segundo a voz crítica). É este o início de uma errante trajetória por aprovação, que passará logo pela imitação dos cânones da história oficial (lembrando o deboche de seus pares, no início de Glória ao Cineasta), e, inclusive, pela própria implosão artística como combustível da obra-de-arte. Uma das mais marcantes estratégias é a de correr em direção à parede (primeiro com uma bicicleta, mas logo depois, com um carro) carregando baldes de tintas que, em um espetáculo de cores aleatório, deixarão marcada uma tela branca – mimetizando, nesse movimento, as explosões de vermelho dos tiroteios de Brother, Sonatine e Takeshis (não à toa, o momento monocromático à Yves Klein da personagem virá pelo vermelho). Mas Kitano aponta, logo, o resultado da loucura: ao bater com o carro contra a tela branca, o motorista morre. Mata-se o veículo.
A explosão plástica, por si só, também não alcança o efeito desejado, e Machiso passará para o próximo estágio: a produção voluntária de sofrimento pessoal como combustível para a arte. Uma vez desqualificados a técnica e o impulso formal, é no despejo de intimidade que Kitano buscará um projeto artístico “respeitável”. Essa estratégia chega ao grotesco na cena em que Machiso, ao lado de sua mulher e maior apoiadora artística (Sachiko – interpretada por Kanako Higuchi), vai reconhecer o corpo da filha falecida. Machiso pinta o rosto da menina morta com batom e o esfrega em um lenço, na esperança de que a dor extrema feita obra-de-arte tenha, enfim, alguma força. Depois disso, o destino de Machiso não poderia ser outro: tentar se incendiar junto com sua própria obra.
O paralelo com a trajetória de Kitano não poderia ser mais explícito, pois é isso que seus filmes recentes mostram: uma tentativa de queimar a si mesmo e à sua obra, em vida e em público. Queimado dos pés à cabeça, Machiso reaparece todo enfaixado. Descoberto, apenas o olho direito – não à toa, o que vai ao viewfinder da câmera cinematográfica. Apesar do suicídio artístico, sobrevive – em Machiso e em Kitano – a necessidade de se relacionar artisticamente com o mundo. Ele pega uma fatia enferrujada de uma lata de refrigerantes e decide chamar aquele objeto de obra-de-arte – cobrando, claro, um preço alto por isso. Uma mulher diz querer comprar, e logo vemos se tratar de Sachiko – sua única e real admiradora (presença ainda mais ambígua por Kanako Higuchi intrepretar, em fases diferentes da vida de Machiso, sua esposa e sua mãe).
O sofisma de Aquiles e a Tartaruga que abria o filme – e que até então parecia metaforizar a vontade insaciável dos espectadores de alcançarem os filmes – retorna, mas desmontado: “E assim, Aquiles alcançou a tartaruga”, diz uma narração em off. De todo esse fascinante busca pela razão artística promovida por Takeshi Kitano, fica, ao fim, a mais simples das respostas: é ao Amor (não necessariamente o amor romântico, mas o Amor filosófico – a virtude maiúscula capaz de englobar todas as outras), e sempre ao Amor, que a arte serve. O artista sai de quadro, caminhando, com passos de tartaruga, ao lado de sua amada, em direção ao infinito de uma nova e imprevisível obra de arte.